segunda-feira, 22 de março de 2010

Para continuar a falar de política externa...




As últimas viagens internacionais e discursos do presidente Lula dizem muita coisa sobre como a política externa num mundo pós-guerra fria é uma atividade que exige bastante versatilidade. O enfoque e a defesa de posicionamentos referentes à temas específicos é o que, hoje, cada vez mais orienta a diplomacia. A lógica dicotômica dos blocos – EUA, URSS, Terceiro-mundismo, etc. - da Guerra Fria cedeu o passo a algo bem mais complexo, interdependente. Um inimigo ou aliado em comum deixou de ser o principal eixo aglutinador da agenda da política externa para dá lugar a uma série de disputas em torno de demandas, interesses e temas particulares cujos posicionamentos variam de acordo com as situações, agentes e arenas de decisão em foco.

Em um primeiro olhar, os últimos rumos da política externa brasileira podem sugerir uma sensata suspeita de incoerência, um uso abusivo da máxima: “um peso duas medidas”. Por outro lado, as sensibilidades mais calejadas e que se ocupam mais ordinariamente do mundo da política dirão, certamente, em seu realismo duro, que nada há de anômalo nisso. Pelo contrário, como a política é uma atividade dinâmica e movediça, tal conduta seria de fato uma virtude necessária. Para estes últimos, dizer uma coisa e pensar outra, dizer isso em tal momento e lugar e fazer aquilo em outro é, na verdade, humano demasiado humano, e, por isto mesmo, político demasiado político. A política tem muito a ver com esse jogo de cenas e de impressões, de aparência de formas e figurações, variável segundo os espectadores e atores em palco.

Ao sabor das conveniências e situações, defende-se, muito corretamente, a meu ver, a justiça da luta política palestina, e, no entanto, no mesmo gesto se faz vista grossa com respeito à luta dos presos políticos em Cuba. O golpe hondurenho é expressamente condenado, mas isto não significa uma postura similar quanto à continuada inexistência de mecanismos eleitorais através dos quais os cidadãos cubanos possam eleger seus governantes.

Se por lado, a ousadia em defender em pleno parlamento israelense a criação do Estado Palestino - mais uma vez, a meu ver, um correto posicionamento - atesta progressismo e coragem, por outro, estes são suavizados quando, no discurso contrário a produção de armas nucleares, Lula, por exemplo, deixa de mencionar o Irã. Aliás, o mesmo país em que a democracia, as manifestações de descontentamento social e político são duramente reprimidas, e com a mesma violência com que elas são nos guetos da Faixa de Gaza pelas tropas truculentas de Israel.

É louvável, em diversos pontos, a atuação e a agenda diplomática que o presidente Lula almeja instituir, apesar dos deslizes e incongruências com que, por vezes, suas “visitas” e negociações internacionais ocasionam. A construção de uma agenda internacional progressista, isto é, que se defina no sentido de levar às arenas de decisão e ao debate internacional questões que dizem respeito à expansão de direitos de cidadania - participação democrática, direitos humanos, políticas de reconhecimento e de redistribuição etc. -, dentro das esferas estatais e também no âmbito internacional, passa pela contingência de um campo de relações e articulação de sentidos diversos, ou seja, cujos posicionamentos e discursos variam de acordo com os agentes, demandas e interesses em jogo num contexto particular. Porém, reconhecer tal condicionamento e a necessária prudência em relação aos efeitos da fala e das impressões não significa sustentar que ela, a agenda política internacional, permaneça integralmente à mercê de uma “política de resultados e impressões”, a sabor das conveniências, dos negócios envolvidos e almejados.

Obviamente, em circunstâncias de disputa por resultados e lucros, é ingênuo querer se contentar com pureza de intenções, autenticidade, coerência, etc., isto é, o que Max Weber chamaria de “motivos éticos na política”, e fazer destes o marco de referência para a avaliação ou análise da esfera política. Mas pensar e experimentar a política como exercício do poder e/ou luta pelo poder apenas é circunscrevê-la tão somente ao espaço das instituições oficiais, ao campo de ação dos profissionais destas e seus ardis, e, desse modo, negar sua capacidade de questionamento e de invenção a propósito das formas de vida que estamos enredados e acerca daquela que almejamos.

Questionar os propósitos dos temas e das situações em jogo e o desenho normativo de sociedade que eles indicam, isto é, observar e inscrever os efeitos práticos possíveis ou efetivos na vida das pessoas, independente dos interesses envolvidos, eis o que deve balizar a tomada de decisão em defesa de uma agenda progressista. Nisto, coragem e alguma coerência são indispensáveis, a meu ver.

Alyson Thiago F. Freire

Um comentário:

  1. "Aliás, o mesmo país em que a democracia, as manifestações de descontentamento social e político são duramente reprimidas, e com a mesma violência com que elas são nos guetos da Faixa de Gaza pelas tropas truculentas de Israel.".

    Muito bem colocado.

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