sábado, 27 de fevereiro de 2010

Mais do que lamentável...



Parece que a fantástica tese acerca da necessidade do golpe de 64 como uma prevenção diante da eminente ameaça comunista que, supostamente, rondara o Brasil à época, ainda encontra, nos altos escalões do poder, seus fiéis tributários. O mais recente é o ministro do STF, Marcos Aurélio, que em entrevista ao jornalista Kennedy Alencar – veja aqui a entrevista – proferiu as seguintes palavras com respeito à instalação da ditadura militar de 1964:

“Um mal necessário, tendo em conta o que se avizinhava. Teríamos de esperar para ver [uma possível ditadura comunista] e foi melhor não esperar.”.

Triste e preocupante declaração, pois, em tese, um jurista é aquele que mais do que qualquer um deve zelar sobre a continuidade do Estado de direito e da lei. Declarações como essa, aliado à firme tendência de muitos segmentos em proteger os protagonistas e demais agentes da ditadura, exprimem claramente que ainda não ocorreu o devido e necessário colapso do regime autoritário no Brasil.

Os componentes autoritários de 64 ainda persistem, não como ecos de um fantasma mas como uma realidade extremamente tangível. Permanecem impregnados nas mentes de muitos brasileiros que, de quando em quando, mobilizam argumentos estereotipados e clichês, dirigidos, sobretudo, às classes populares, quando se trata de justificar ou aprovar condutas violentas e abusivas contra os “transgressores da ordem e da propriedade” ou medidas de recrudescimento das leis como forma de combate à criminalidade, à violência urbana, às drogas, etc. Permanecem harmonicamente entrelaçados, como atesta o cotidiano de qualquer periferia de uma grande cidade, com as práticas abusivas e arbitrárias das instituições de ordem e seus agentes: dos abusos de poder e de autoridade dos policiais e dos funcionários das instituições de reclusão ao comportamento insensível e irresponsável de juízes, secretários e gestores de segurança.

Pois bem, amigos leitores, deparar-se com esse tipo de declaração do ministro Marcos Aurélio não é apenas algo diante do qual devemos, erguendo nossas razoáveis e comedidas vozes, pronunciar um cômodo “lamentável”. Não, pois ela diz algo de relevante sobre nossa situação atual e, principalmente, sobre a urgência de lidarmos com nosso passado recente e enfrentarmos alguns fatos dos “anos de chumbo”. Não somente com o justo ímpeto de acertamos as contas com as infrações e as arbitrariedades cometidas, mas, sobretudo, para falar como Foucault, para “fazer a história do presente”. E, assim, intensificar e acelerar o processo de consolidação de nossa democracia, em claro e franco contraponto com o paradigma minimalista e conservador que marcou o período de transição democrática no Brasil, o qual vige ainda hoje, como testemunha as falas daqueles que defendem – até mesmo Fernando Gabeira a propósito de algumas diretrizes do PNDH III - que certo temas devem ser “congelados” no tocante ao tratamento e avaliação pública e institucional.

Alyson Thiago F. Freire

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Entrevista com Alain Touraine:"A sociedade não mais existe como instrumento analítico."



Leia abaixo uma entrevista com o sociólogo francês Alain Touraine, autor de uma importante obra, na qual destaca-se, sobretudo, seus estudos sobre os movimentos sociais e o lugar destes nas contradições de uma sociedade pós-industrial. Na entrevista a seguir, Touraine discorre a propósito dos efeitos do eclipse do modelo neoliberal de globalização e da última crise econômica do capitalismo no engendramento de uma nova tipologia de individualismo, o qual, ao mesmo tempo que põe em xeque os instrumentos analíticos mais consagrados da sociologia, conduz os indivíduos a uma tendência de autocentramento e impermeabilização frente à pluralidade característica das condições de vida das sociedades contemporâneas.

A entrevista foi publicada pelo jornal italiano I1 Manifesto, no dia 17/02/10, e realizada por Benedetto Vechi. Tradução de Benno Dischinger e retirada do sítio do Instituto Humanitas da Unisinos. Acesse-o
aqui. Aproveitem!


Em seu livro “Pensar Outramente” o senhor sustenta que a sociedade não mais existe, enquanto o indivíduo se tornou a figura que melhor explica as profundas tendências do viver coletivo...

A sociedade não mais existe como instrumento analítico. O individuo ao qual me refiro não deve, no entanto, ser considerado uma via de saída das dificuldades de se representar analiticamente a sociedade. Parto da constatação que no capitalismo existe a forte tendência de individualizar tudo, dos consumos às relações de trabalho. Poderemos falar de uma sociedade de indivíduos, mas, assim fazendo, alimentam-se muitos equívocos. É, portanto, necessário articular melhor as tipologias emergentes de indivíduo.

Existe o “indivíduo consumidor”, para o qual as empresas olham com atenção para melhor afinar suas estratégias de marketing. Há, depois, homens e mulheres que, enquanto indivíduos, querem viver com quem tem as mesmas convicções religiosas ou identidades culturais. Esta é a tipologia do “indivíduo comunitário”. Há, enfim, quem quer afirmar os próprios direitos, considerando-os direitos universais. Aqui encontramo-nos diante de “sujeitos” entendidos iluministicamente.

A co-presença destes três tipos de indivíduos pode ser mais bem compreendida se fizermos referência ao conceito de Anthony Giddens sobre a modernidade reflexiva. O estudioso inglês sustentou que as modernas sociedades capitalistas desenvolveram uma capacidade reflexiva sobre as conseqüências das escolhas tomadas coletivamente. Por isso, tanto a escolha como os procedimentos para aplicá-la são fortemente condicionados por tal capacidade reflexiva. Uma tese que merece ser aplicada ao indivíduo, porque todas as três tipologias que o ilustram manifestam tal “refletividade”. Assim, os consumidores não são presas inermes das estratégias de marketing, mas desenvolvem uma capacidade própria de autonomia do mercado. O mesmo se pode dizer dos “indivíduos comunitários”, que não consideram sua comunidade eletiva uma jaula”.

Há, no entanto, tipologias que podem ser atravessadas pela mesma pessoa. Um indivíduo pode autorrepresentar-se como consumidor, mas também como expoente daquele comunitarismo que se orienta pelo conceito “eu - nós”, ou então, como sujeito portador de direitos. Elas me parecem, ao invés, tipologias impermeáveis. Por mais sugestiva que seja a tese de Giddens sobre a modernidade reflexiva, isso não elimina o risco que tanto o indivíduo-consumidor, como o indivíduo comunitário e o sujeito se fechem em si mesmos. Além de reflexiva, nossa sociedade é uma sociedade simbólica. Quanto ao passado, os indivíduos produzem e controlam a produção dos símbolos que consideram relevantes em sua vida. Podemos dizer que cada um deseja ser reconhecido também como produtor de símbolos. A luta pelo reconhecimento pode conduzir a um fechamento com relação ao Outro, àquela impermeabilização que vejo operante na realidade contemporânea.

Além da morte da sociedade, o senhor sublinha o eclipse dos movimentos sociais...

Mais do que eclipse, existe a crise do paradigma que via os movimentos sociais como expressão de determinados interesses econômicos, de grupo ou de classe. A muitos anos eu sublinho a relevância dos temas culturais e da identidade nos movimentos sociais. Mas, suponho que você quisesse perguntar-me se também esta leitura dos movimentos sociais tenha entrado em crise. Bem, creio que tenha havido uma mudança importante. Quem participa dos movimentos sociais não está interessado apenas em qualificá-los do ponto de vista da cultura ou da identidade que quer reconhecimento. Entra também um forte componente de afetividade, de cuidado de si e do outro, como emerge, por exemplo, dos movimentos feministas.

Nestes dias, encontrei alguns homens e mulheres que vocês na Itália chamam o “povo viola”. Ficaram golpeados pelo pathos, pela insistência sobre o cuidado da democracia, da constituição política, do elo social. Esta afetividade é que é a verdadeira novidade. Mais do que falar de movimentos sociais, podemos dizer que há homens e mulheres dispostos a pôr-se a caminho.

Esta idéia de pôr-se a caminho, em viagem, é muito zapatista, um movimento que o senhor estudou...

Os zapatistas realizaram uma ruptura com as velhas concepções da guerrilha latino-americana. Preferiram a expressão “caminhar, indagando”. Nisto prefiguravam que não existia uma realidade social organizada e pré-definida, mas homens e mulheres dispostos a pôr-se, como você diz, em movimento. De formas diversas, acontece também junto a nós que a gente se ponha a caminho para afirmar direitos, identidades culturais, estilos de vida”.

O estudo das sociedades sempre se nutre de imaginação: uma imaginação com o fim de conceituar realidades, fenômenos não contemplados pelo acúmulo analítico herdado do passado. Há dois anos aconteceu um imprevisto, a crise econômica. Não lhe parece que este fenômeno inesperado ponha em discussão suas tipologias sobre o indivíduo?

Segui com muito interesse as discussões sobre a incapacidade dos economistas de prever a crise. E me impressionou a explicação dada. Para alguns, o encontro da perspectiva neo-keynesiana com a neoclássica incentivou o uso de modelos matemáticos que não tinham nenhuma relação com a realidade.

Mas, além desta explicação, houve economistas, não suspeitos de extremismo, que, ao invés da possibilidade de crise, escreveram sobre ela. Refiro-me a Amartya Sen, Paul Krugman e Joseph Stiglitz que, para explicar o que depois efetivamente aconteceu, usaram ordens do discurso que tinham poucos pontos de contato com a economia. A crise, a meu ver, não põe em discussão esta centralidade do indivíduo. Existe antes o risco que ela acentue os riscos do fechamento, a impermeabilização de cada uma das diversas tipologias das quais falei acima.

No entanto, existe uma crise que tem efeitos telúricos, tanto social como politicamente. O senhor sustentou que a globalização era um fenômeno irreversível. Pergunta de advogado do diabo: não é que a crise tenha posto em movimento um fenômeno de desglobalização?

Realmente não estou convencido disso. O que entrou em crise é o modelo de globalização neoliberal da hegemonia estadunidense.

Não pode, todavia, negar que a crise ponha em discussão o equilíbrio entre dimensão global e dimensão local, onde o global comandava sobre o local?

Prefiro falar de dimensão ‘glocal’, embora seja um termo pouco atraente. Nos anos passados, os teóricos neoliberais da globalização sempre falaram de exautoração, se não de fim do Estado nacional. Era uma tese errada. O Estado-nação sempre desempenhou papel importante na globalização. Não só de interface entre dimensão global e dimensão local, mas como processo de adaptação glocal. O Estado foi importante porque constituiu o âmbito de manutenção da democracia ante o poder da economia. Além disso, procurou salvaguardar aqueles direitos sociais de cidadania que caracterizaram as sociedades capitalistas. A crise pode ter efeitos telúricos não no que se refere à globalização, ou seja, àquela estreita interdependência entre economias e realidades sociais nacionais, mas precisamente para a democracia. Um dos efeitos pode ser, ao invés, o emergir de estados autoritários e antidemocráticos no cenário global.

A crise significa também desemprego. Na França assistimos a conflitos em que operários seqüestravam dirigentes de empresas, ameaçando fazer explodir os estabelecimentos. Além da dramaticidade da situação, emergia uma realidade operária que podia ser mais bem explicada com o mecanismo da revolta dos poderes. O que pensa disso?

Também segui com interesse alguns conflitos operários na Itália, onde os trabalhadores andavam sobre os telhados das fábricas: quando existe crise, o movimento operário sempre está em dificuldade e talvez possa escolher formas de luta que pertençam à cultura política do próprio movimento. Sempre foi assim. Mas, devemos considerar também o fato que a globalização neoliberal significou aumento da precariedade. Talvez estejamos assistindo a formas de luta de um movimento operário em que a maioria dos trabalhadores viva a precariedade. No momento, são espetaculares, mas não violentas. Não é dito que com a crise as coisas não mudem.

50 anos da 'New Left Review'



Umas das mais importantes e ricas revistas do pensamento político e teórico de esquerda comemorou, agora em fevereiro, cinquenta anos de existência. No número de aniversário da New Left Review ( NRL 61, Janeiro-Feveiro 2010), a atual editora da revista, Susan Watkins, realiza um balanço crítico dos cinquenta anos de trajetória da revista. Para ler o texto clique aqui. A New Left Review já contou com nomes como Stuart Hall e Perry Anderson.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Tiger Woods ou a intimidade como espetáculo




Num tempo banhado pela obsessão pela visibilidade, pela exposição e mercantilização da intimidade, a antiga máxima burguesa, segunda a qual certas coisas não se dizem, não se mostram e não se fazem em público, já pertence a um passado cuja distância e o desgaste no tempo já o vão tingindo com cores idílicas. A cobertura sensacionalista conferida aos recentes “escândalos sexuais”, envolvendo o golfista Tiger Woods é mais uma pá de cal nesse passado, que, aos excitados olhos contemporâneos, já não goza de nenhuma pregnância. A metáfora da liquidez, que desde Marx é utilizada para descrever a sociedade de mercado, e que atualmente é elevada a categoria central na sociologia de Bauman, é mais do que nunca a força irresistível, a torrente que move e remove de cima a baixo nossa época.

Se não bastasse a proliferação das manchetes, reportagens, fofocas, explorando as aventuras extraconjugais do antes bom moço Tiger Woods, na última sexta-feira, 19/10, Tiger Woods concedeu uma entrevista coletiva com ares de expiação pública, cujo intuito era, perante milhões de pessoas, confessar e se desculpar pelo seu comportamento promiscuo.

O intrigante a se pensar, nesse caso, consiste em observar como a trivialidade, revelada como imagens capturadas da vida íntima de famosos ou anônimos, e transmitidas pelos mass media, parece constituir, cada vez mais, o elemento par excellence que nos liga ao mundo. Há nisso algo de muito grave. A condição de trivialidade disfarça uma relação tenebrosa com o outro, com as nossas ações e posicionamentos em relação ao outro. Ela, a banalidade, faz com que a violência e a crueldade presentes numa situação contingente, como a entrevista coletiva de Tiger Woods, sejam enevoadas, pouco perceptíveis. Eis aí sua função, a aparência de banalidade presta precisamente para a ocultação da violência e da crueldade, e, nesse caso específico, subsumindo-as para o consumo como “mais um escândalo de uma celebridade”, como uma notícia, um enredo, isto é, como banalidade.

O banal é aquilo que se dá a aparecer como tal, ou seja, aquilo que, por sua repetição e trivialidade, é desprovido de qualquer profundidade e singularidade. A banalidade é marcada por relações automáticas, irrefletidas; destituídas de pertinência crítica, moral, de julgamento, portanto, marcadas pelo supérfluo. O que com freqüência se esquece é que as aparências na medida em que revelam um lado, ocultam outro. A banalidade consiste, de fato, nessa operação de aparição/ocultamento.

Mas que violência é esta que a banalidade oculta no caso Tiger Woods? Ela oculta um jogo vinculante entre verdade e confissão. Um jogo que vincula o sujeito à obrigação de confessar a verdade de seus atos sexuais enquanto conteúdos privilegiados de acesso à identidade concernente ao indivíduo. Temos claramente no ritual público a que foi submetido Tiger Woods a presença de uma velha tecnologia de poder, a prática confessional, a qual Foucault descreveu e examinou, com brilhante originalidade, em sua obra.

O interessante dessa tecnologia de poder, como explica-nos Foucault, é justamente sua relação com os segredos em torno do desejo sexual. Desenvolve-se uma espécie de jogo que converte a sexualidade como a “chave que permite analisar e constituir individualidade” e os segredos – as enunciações – numa matéria inteligível por meio da qual se pode extrair e revelar a verdade da identidade do sujeito confidente. De início, nos séculos XV, XVI e XVII, a confissão estava restritas aos lugares institucionais tais como as salas de aula, os seminários, tribunais da inquisição e confessionários. É a partir do final do século XVIII que a discursividade do desejo expande-se a outros âmbitos do tecido social; nos espaços e nas práticas relativas ao judiciário, à medicina, à pedagogia, às relações familiares e amorosas, enfim, expande-se pelo cotidiano.

A confissão como tecnologia de poder é parte fundamental num processo de colonização da vida interior e da intimidade, que hoje tem nos meios de comunicação um lugar privilegiado do qual retira uma eficácia e extensão sem precedentes. Portanto, a entrevista/confissão do famoso golfista, não me parece, seguramente, que seja fruto de uma exigência moral do mercado ou da opinião pública para a readmissão e perdão daqueles que se portaram inadequadamente. E também, por mais que ela tem sido motivada pela pressão dos patrocinadores e agentes do atleta na tentativa de atenuar os efeitos sobre as arrecadações e dividendos, isto não explica o essencial.

No mercado das aparências em que se transformou, em parte, o espaço público contemporâneo, o espetáculo da intimidade, sua banalização, leva-nos a não ponderar sobre o que estamos fazendo com os outros, ou seja, a incapacidade de pensar em relação ao ponto de vista do outro ou de sua situação. Aceitamos participar do sofrimento e da humilhação do outro, fechando-nos na banalidade da situação sem compreender o que, de fato, estamos fazendo. Tal conduta pode ser estendida a uma série de práticas sociais, como as músicas que depreciam o feminino, por exemplo.

A desculpa da imprensa e dos empresários é que Tiger Woods é um espelho para os jovens, um “exemplo para juventude”, por isto a retratação pública era um dever moral do golfista perante seus fãs e à opinião pública. Ora, mas é o mercado com as devidas ferramentas de exposição multimídia, e com fins comerciais, que o transformou em “exemplo para juventude”. É o mercado, e suas políticas de marketing, que faz com que certas pessoas sejam exibidas como marcas, ou melhor, vendidas no mercado das aparências como uma figura de virtudes, um exemplo a ser seguido, um modelo a ser imitado, signo de sucesso e realização.

A colonização e comoditização da vida íntima convertem-se, cada vez mais, em uma espantosa banalidade da vida diária, que leva-nos à inconsciência da mediocridade e da insensibilidade características da época em que vivemos. Exemplos do gozo irrefletido com o sofrimento e com humilhação alheia não faltam. Os próprios nomes das pessoas – Eloá, Geisy e Tiger Woods – são precedidos do termo policialesco “caso, reforçando ainda mais a síntese dramática, ficcional e estetizada de nossa realidade. O banal tornou-se a ligadura de nossa relação com o mundo e com o outro. Mas sua espetacularização não é mera reprodução de imagens. Lembremos Guy Debord: “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada pelas imagens”.


Alyson Thiago F. Freire

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

"Devemos buscar uma revolução midiática"

Entrevista com o jornalista Pascual Serrano, fundador da página Rebelión, publicada pelo Brasil de Fato. Segundo o jornalista espanhol a esquerda mundial deve criar seus próprios meios para trazer à tona os fatos “silenciados” pela imprensa comercial. Segue abaixo alguns trechos da entrevista:

Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Nilton Viana e Tatiana Merlino (São Paulo)

O silêncio é, paradoxalmente, um dos principais mecanismos adotados pelos meios de comunicação para manipular os fatos. Se uma notícia não interessa aos donos da imprensa – e, consequentemente, aos donos do mundo –, ela simplesmente não é veiculada. Tal denúncia é feita pelo jornalista espanhol Pascual Serrano, um dos fundadores da página alternativa Rebelión e autor do livro “Desinformación. Cómo los medios ocultan el mundo”, lançado em meados do ano passado.

“Se contarem muitas mentiras, perderão sua credibilidade, perderiam sua eficácia como mecanismo de formação de opinião”, diz, em conversa na Escola Nacional Florestan Fernandes, em Guararema (SP). Portanto, segundo ele, os meios, além de ignorarem seletivamente determinados fatos, lançam mão de outros expedientes, como a descontextualização e a linguagem enviesada. Para Serrano, só há um modo da esquerda se defender de tamanha manipulação. Criar seus próprios meios, em vez de ficar esperando por pequenos espaços na grande mídia.

Brasil de Fato – Você tem um livro chamado “Desinformação. Como os meios ocultam o mundo”. Quais são os principais mecanismos que os meios utilizam para ocultar o mundo?

Pascual Serrano – Eu dividiria em dois mecanismos. Por um lado, os estruturais: ou seja, os mecanismos cotidianos de funcionamento da imprensa que, por seu modelo de trabalho, são incompatíveis com a explicação do mundo. Fundamentalmente, seria a falta de antecedentes sobre um contexto para se compreender uma situação complexa, a dinâmica da televisão – que, com seu ritmo trepidante, impede a compreensão, sobretudo, de assuntos complicados – e o culto ao sensacionalismo da imagem – que ocorre muito na televisão. Isso impede aprofundar as questões e enviar uma mensagem complexa. Por exemplo, quando você quer dar um sentido simples – que o Irã tem bomba atômica ou que o Chávez é um ditador –, isso pode ser dito em poucas palavras.

Mas se você quer explicar que a política dos EUA está provocando um genocídio no Afeganistão, isso exige uma explicação mais complexa. Uma outra situação é quando há um consenso e um plano premeditado por parte dos grandes meios para enviar uma mensagem concreta. Isso contempla estigmatizar ou criminalizar líderes políticos que não são do gosto do establishment mundial, até criminalizar movimentos sociais, ou determinados coletivos ou causas. Atentem para o fato de que o mecanismo não é somente a mentira, que essa existe, mas não é a mais habitual. Porque eles sabem que sua principal carta é a credibilidade. Se contarem muitas mentiras, perderão sua credibilidade, perderiam sua eficácia como mecanismo de formação de opinião. Ou seja, o plano é mais refinado: utilizam-se de silenciamentos de notícias que eles não gostam. Por exemplo: a missão Milagre, realizada em uma parceria entre Venezuela e Cuba, que fez com que um milhão de pessoas de origem humilde na América Latina e Caribe conseguissem recuperar a visão, é notícia, parece evidentemente relevante , mas isso está silenciado. Além disso, eles também jogam com o enquadro, o enfoque da notícia, buscando elementos dentro de um contexto que levem para uma tese e não para outra. E o que fica claro no livro é que o modelo muda de uma região para outra, de um tema para outro. Por exemplo: no conflito Palestina-Israel, o problema é a falta de contexto. Ninguém, neste momento, parece saber dizer a origem deste conflito, apesar dele estar presente todos os dias no noticiário. Utilizam a linguagem como método de manipulação, de maneira que sistematicamente chamam de terrorista os palestinos. Chamam de sequestrados os soldados israelenses capturados.

Chamam de detidos os civis palestinos que são sequestrados pelo exército israelense. Na África, por exemplo, aplica-se o silenciamento, ou apresenta-se os conflitos como questões tribais, em vez de mostrarem os interesses de empresas e poderes coloniais como França e EUA. E, na América Latina, utilizam a estigmatização e criminalização constante dos líderes, como Hugo Chávez, Evo Morales ou Fidel Castro. No caso da Venezuela, é curioso, porque apresentam como escândalos notícias que se apresentam como normais em outros países. Reivindicam como escândalos a não renovação de uma concessão de TV cujo prazo acabou e a mudança de um fuso horário. Há outra pauta habitual em relação à América Latina, através da qual o presidente ou o líder político são apresentados sempre em meio a uma imagem de crise, desestabilizações e caos. Isso faz com que, na Europa, todo mundo conheça os nomes dos presidentes da Bolívia e da Venezuela, mas não conheçam o nome do presidente do Peru ou do México. Inclusive, se você pergunta quem teria sido outro presidente da Bolívia ou da Venezuela, não sabem dizer. E dos últimos anos, Evo Morales e Hugo Chávez, todo mundo sabe quem é.

(...)

Você acredita que existe uma espécie de plano estabelecido entre os diversos meios para desinformar ou as coisas acontecem de forma mais natural e automática, como sendo uma espécie de ação de imprensa que vai se estabelecendo?

Não é um plano desenhado, mas parte da evolução espontânea do mecanismo de funcionamento dos meios de comunicação. Seguindo a ideia: meios de comunicação são propriedades de grandes grupos empresariais. Interesses econômicos de grandes empresas multinacionais pedem grandes investimentos em publicidade. Políticos liberais que não gostam de políticas progressistas reagem em conjunto com estes atores.

Ou seja, assim se forma um consenso para satanizar o Hugo Chávez ou para satanizar ou criminalizar a Revolução Cubana. A grande imprensa não se reúne para dizer: “como vamos atacar Cuba ou Chávez?”. Os interesses destes grupos econômicos é que vão atuar em consenso, sem necessidade de se coordenarem. Um exemplo claro são os países latino-americanos que passam por reformas nas leis de comunicação. A reação dos grandes meios de comunicação na Venezuela, na Argentina e no Equador foi igual. Governos que iniciam processos de democratização dos meios de comunicação, cedendo espaço aos movimentos sociais, meios independentes e imprensa livre, encontram sistemática oposição de grupos midiáticos espanhóis, bolivianos, argentinos e equatorianos. E, se amanhã houver uma iniciativa como essa no Brasil, será igual.

Mas, se por um lado não há um plano, por outro existe uma articulação dos meios, como, por exemplo, a Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) ou a ONG Repórteres Sem fronteira.

Como é esta articulação?

Sim, eles têm mecanismos de combate comum. E é bom decifrar como operam e como não têm nenhuma legitimidade ou representatividade. Por exemplo, quando se fala da Sociedade Interamericana de Imprensa, não devemos nos cansar de explicar que se trata de uma associação patronal. Que defende as empresas e não representa nenhuma liberdade de expressão. É como se empresas que constroem estradas falassem da falta de liberdade de movimento porque estão impedidas de construírem uma estrada na Amazônia.

Não, liberdade de movimento é diferente de construir estradas. Além disso, temos que esclarecer que quando as empresas falam de liberdade de expressão, estão reivindicando o seu direito de censura. Ou seja, querem continuar com seu direito de manter o oligopólio e o controle da informação. Dizer o que pode ir ou não para a tela e chegar ao público. A Repórteres Sem Fronteiras é algo similar. Tem denunciado os jornalistas mortos no Iraque, mas muda de reação quando fala da Colômbia. Recentemente, fiz em uma entrevista com um jornalista colombiano que disse que uma vez perguntou a um representante da Repórteres Sem Fronteiras como ele considerava a liberdade de expressão na Colômbia. Ele respondeu: “Sim, é verdade que nos matam, mas na Colômbia a liberdade de expressão existe”!

(...)

Como é possível se contrapor a este poder?

Neste momento, o principal mecanismo de combate que o capital e a burguesia possuem contra os governos progressistas não é sequer a ameaça de um golpe militar, são os meios de comunicação. Já conseguiram coisas que nenhuma empresa e nenhum governo conseguiram. Maior impunidade, menos controle por parte das legislações. Creio que os governos progressistas reagiram demasiadamente atrasados. Evo Morales ou o Lula passaram anos reclamando que os meios de comunicação não paravam de atacá-los e agredi-los.

Apenas reclamar me parece uma política ineficaz. Se um governo progressista é atacado, o que ele tem a fazer é desenvolver políticas públicas para evitar isso. É como em educação: se não há colégio para todas as crianças, os governos não devem vir se queixar, devem construir escolas. E estes governos devem criar políticas públicas de democratização da comunicação. Mas estes meios públicos e comunitários não podem se converter em meios de governo, presidentes e partidos. Devem ser participativos, democráticos e estar sob controle do cidadão. Esses são pontos imprescindíveis e que estão se desenvolvendo lentamente, mas com passos firmes. A Venezuela está na primeira linha de desenvolvimento de meios comunitários e públicos, à frente da Europa.

Você acredita que a esquerda, de maneira geral, já se deu conta da importância dos meios de comunicação como mecanismo de resistência à dominação das elites?

A esquerda se deu conta, ela é consciente de que tem grandes inimigos nos meios de comunicação, mas não sabe o que fazer. Durante muitos anos, a esquerda achou que deveria pactuar com os grandes meios. Organizando entrevistas coletivas, passando as informações, dando subvenção fiscais. Assim, acreditaram em um acordo com o capital, pensando que ele os poderiam deixar governar. A esquerda tradicional, seja em governos progressistas ou em partidos políticos, precisa compreender que não há pacto possível.

Os grandes meios somente hipotecam espaços, mas não deixarão que nada se mova. O que devemos buscar é uma revolução midiática. Pois o dilema da mídia é o mesmo dilema que há em outros setores. Então, não há pacto com latifundiário, porque ele nunca vai querer perder o latifúndio, nem de terra, nem de mídia. Porque são empresas de comunicação e, por trás, grupos de empresários e um modelo econômico.

(...)


Leia a entrevista completa aqui.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Uganda: Manifestantes pedem pena de morte para gays



Milhares de pessoas manifestaram-se nos últimos dias na cidade de Jinja, em Uganda, em apoio a um projeto-lei do governo do país que prevê a pena de morte para "homossexualidade agravada".

O protesto, organizado pelo 'Movimento Internacional contra a Homossexualidade no Uganda', reuniu entre 25 a 30 mil pessoas. Na capital, Kampala, a polícia proibiu uma marcha com o mesmo propósito.

Nos cartazes podiam-se ler frases como "Não à sodomia, sim à família" ou "Homossexualidade deve ser abolida".

As seguidas manifestações populares fortalecem cada vez mais a possibilidade de aprovação do projeto de lei, elaborado pelo parlamento de Uganda, que propõe impor a pena de morte aos gays em Uganda. O dito projeto, proposto após a visita de líderes cristãos conservadores norte-americanos, abrange, ainda, amigos e familiares que não informarem a existência de gays às autoridades, condenando-os a até sete anos de prisão. Até mesmo proprietários de imóveis poderão ser detidos por alugar casas para homossexuais.

Ativistas dos direitos dos gays dizem que a lei deve ser aprovada. Mas o projeto está sendo debatido e pode sofrer alterações antes de ser votado. Não foi determinada a data para a votação.

A lei atual de Uganda condena à morte homossexuais ativos que tenham o vírus HIV e estupradores de mulheres. "Criminosos seriais" também podem ser condenados à pena capital, embora a lei não defina o termo. Qualquer um condenado por atos homossexuais pega prisão perpétua.

Qualquer pessoa que "ajude, coopere, aconselhe ou busque outra pessoa para atos de homossexualidade" é condenada a sete anos de prisão se for condenado. Proprietários de imóveis que aluguem quartos ou casas para homossexuais também podem ser condenados a sete anos de prisão e qualquer um com "autoridade religiosa, política, econômica ou social" que não relate casos de violação à lei pode ser condenado a três anos de prisão.

Ativistas gays estão fazendo manifestações em várias partes do mundo contra o projeto. Um protesto foi marcado para quinta-feira em Londres e manifestações foram realizadas no mês passado em Nova York e Washington.

Fonte: Gazeta do Povo


Eis abaixo um manifesto/petição que os militantes pelos direitos humanos e gays estão organizando. Assinem, e ajudem a impedir a barbárie que está prestes a desabar sobre a vida de milhares de pessoas em Uganda. Para assinar clique aqui. Segue abaixo o manifesto/petição.

Caros amigos,

O parlamento da Uganda está se preparando para passar uma nova lei brutal, que punirá gays com sentenças de prisão e até pena de morte.

Críticas internacionais levaram o presidente a pedir uma revisão da lei, mas após forte lobby por extremistas, a lei parece estar pronta para votação -- ameaçando gerar perseguição e derramamento de sangue.

Oposição à lei está crescendo, inclusive da Igreja Anglicana. O ativista de direitos gays na Uganda, Frank Mugisha, diz que "Esta lei nos colocará em grande perigo. Por favor, assine a petição e diga a outros para se juntarem a nós. Caso haja uma grande resposta global, nosso governo verá que a Uganda será isolada no cenário internacional, e não passará a lei".

É esperado que uma decisão seja tomada nos próximos dias, e só uma onda de pressão global será suficiente para salvar Frank e muitos outros. A petição global para impedir a lei de morte para gays já ultrapassou 340.000 assinaturas em menos de uma semana.

Essa petição será entregue esta semana ao Presidente Museveni e o parlamento da Uganda até o final desta semana por líderes da sociedade civil e religiosos. O governo já desautorizou uma marcha por extremistas anti-gay esta semana portanto isto mostra que a pressão internacional está funcionando!

A lei propões prisão perpétua para qualquer um acusado de ter uma relação com alguém do mesmo sexo, e pena de morte para quem cometer esse "crime" mais de uma vez. ONGs que trabalham para impedir maior contaminação por HIV podem ser condenadas a até 7 anos de prisão por "promover homossexualidade". Outras pessoas podem ser condenadas a até 3 anos de prisão por deixarem de avisar as autoridades da existência de atividades homossexuais dentro de 24 horas!

Quem apoia o projeto de lei diz defender a cultura nacional, mas uma das maiores oposições vem de dentro do próprio país. O Reverendo Canon Gideon Byamugisha é um dos muitos que nos escreveram - ele disse que essa lei:

"Está violando a nossa cultura, tradição e valores religiosos que não apoiam intolerância, injustiça, ódio e violência. Nós precisamos de leis para proteger as pessoas, não para perseguí-las, humilhá-las, ridicularizá-las e matá-las em massa."

Ao rejeitar essa perigosa lei e apoiar a oposição nós podemos ajudar a criar um precedente crucial. Vamos ajudar a criar um apoio em massa aos defensores de direitos humanos na Uganda, e salvar a vida de muitos ao impedir que essa lei passe -- assine agora e avisa seus amigos e familiares:

Com esperança e determinação,

Alice, Ricken, Ben, Paul, Benjamin, Pascal, Raluca, Graziela e toda a equipe Avaaz.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Prisão e gênero: o encarceramento das mulheres




Abaixo reproduzo o interessante relato, publicado na coluna de hoje do Contardo Calligaris na Folha de São Paulo, sobre a reclusão feminina nos Presídios: a rotina, as preocupações das reclusas, a culpa, a maternidade... Eis aí uma boa trilha para trabalhos etnográficos e, por que não, sociológicos. Boa leitura!

A Lealdade das Mulheres - Contardo Calligaris

Na tarde de quinta-feira passada, estive no Presídio Feminino do Butantã, situado na rodovia Raposo Tavares, longe do bairro paulistano do Butantã.Aconteceu assim: antes do fim de ano, Wagner Paulo da Silva, que eu não conhecia, me escreveu explicando que ele organizava um grupo de leitura regular para detentas desse presídio. O grupo (mais ou menos 25 mulheres) tinha discutido uma de minhas colunas; quem sabe eu me dispusesse a proporcionar um "encontro com o autor"?

Soube depois que Wagner da Silva e Durvalino Peco animam há anos esse grupo de leitura para detentas do presídio do Butantã e, agora, com o apoio do Estado de São Paulo, estendem o programa a 26 penitenciárias da região metropolitana (para isso, eles promovem, na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, um curso gratuito de formação de mediadores -as inscrições já estão encerradas, mas vale a pena conferir: www.fespsp. org.br/leiturativa/).

Enfim, voltando das férias, liberei uma tarde para aceitar o convite e encontrar minhas leitoras. Ficamos conversando mais ou menos duas horas, e saí de lá com algumas reflexões. Eis uma delas.
A prisão, para as mulheres, é uma punição mais severa do que para os homens, e a causa dessa diferença é um atributo feminino.

Claro, há homens leais e mulheres desleais, mas, em regra, a lealdade é uma qualidade mais feminina do que masculina. Não estou pensando na fidelidade amorosa e sexual -nesse campo, homens e mulheres são capazes das mesmas "traições". Penso numa lealdade mais fundamental, que uma comparação vai explicar facilmente.

Em dia de visita numa penitenciária masculina, a fila de mulheres (esposas, mães, filhas, irmãs) é longa: facilmente, é mais de uma visita feminina por cada preso.

Em dia de visita numa penitenciária feminina, a fila é curta e, em sua grande maioria, composta pelas mães das detentas; os homens aparecem num número irrisório. Sei lá, por 700 mulheres no presídio, uma dúzia de gatos pingados visitando. Os homens se esquecem de suas companheiras assim que as portas do presídio se fecham sobre elas. Abandonada pelo companheiro ou marido, a mulher (outra prova de lealdade) prefere duvidar de si: será que o marido nunca comparece porque ela não é, nunca foi, a mulher que ele queria?

A deslealdade masculina aparece também quando os homens são presos; eles são bem felizes de receber a visita das mulheres que voltam a cada semana, lealmente, anos a fio, mas, com frequência, se esquecem dos filhos que deixaram fora do presídio.

As mulheres presas, ao contrário, só pensam nas crianças que estão lá fora (em geral, com a avó; quase nunca com o pai). E, de novo, a lealdade com as crianças as leva a duvidarem de si mesmas: no dia em que sairão do presídio, os filhos não as reconhecerão, ou então, de qualquer forma, eles já gostam de avós, vizinhas, tutores e tutoras mais do que delas - e por aí vai.

Facilmente, as mães detentas vivem o afastamento das crianças não como consequência da punição pelos crimes que elas cometeram, mas, bem mais sofrido, como punição por elas não "merecerem" ser mães -como se os filhos estivessem longe porque elas não souberam e não saberiam ser mães.
As mulheres, qualquer criminologista sabe, agem criminosamente por razões diversas das dos homens. Em regra, matam por paixão amorosa; quando traficam ou assaltam é, frequentemente, para acompanhar o parceiro. Com isso, a prisão feminina é uma espécie de pena do talião: crimes cometidos por amor são punidos pelo sumiço dos homens amados e pelo medo da perda do amor das crianças.

Na época em que trabalhei em instituições psiquiátricas fechadas, quando o expediente terminava e estava na hora de ir embora, no fim do dia, eu era acometido por uma tristeza profunda. Acabava de compartilhar um bom tempo com os que estavam lá internados, e eis que, agora, eu ia embora, para uma casa, uma companhia, o convívio dos amigos. E eles, não; eles ficavam. A tristeza era uma espécie de culpa por abandoná-los no que era, de fato, uma desolação. Pois bem, ao sair da penitenciária do Butantã, não senti nada disso, pois não havia desolação. Não teria como fazer elogio maior à direção do presídio, à equipe que lá trabalha e às detentas que encontrei, pela resiliência de sua vontade de viver.

Retirado da www1.folha.uol.com.br

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

“O PT quer impedir que música que fala do Bolsa-Família seja cantada no carnaval”




Nesses últimos dias de carnaval, recebi um curioso email, cujo título era o seguinte: “O PT quer impedir que música que fala do Bolsa-Família seja cantada no carnaval”. No email, o que lemos são acusações de censura e de cerceamento da liberdade de expressão endereçadas ao PT. O alvo da suposta censura do PT seria uma certa “marchinha crítica” aos efeitos perniciosos do Bolso Família e do Fome Zero. A música de autoria de Vasco Vasconcelos seria tocada no carnaval de Recife em comemoração ao 31º aniversário do bloco Siri na Lata. Eis alguns trechos da marchinha:

“Chega de trabalho, basta de tanto ‘lero-lero’, não vou mais encher minhas mãos de calo, vou viver da bolsa do ‘Fome Zero’. Minha mulher está muito feliz, já pediu dispensa do trabalho. Não quer mais ser uma faxineira pra viver dessa bolsa brasileira. Por isso, eu canto ‘Obrigado Presidente!’ Por o senhor ter estendido a mão, distribuindo esmola via cartão, retribuído com a sua reeleição. Este é o país que vai pra frente com essa massa ociosa e contente, vivendo na ociosidade, ainda diz que isso é brasilidade.”.

Pois bem, como o perspicaz leitor já deve ter percebido, o que temos, tanto na letra da “marchinha”, quanto no alarde do email, são clichês que por si só já evidenciam a indisfarçável origem social e o (des)gosto ideológico. As críticas, ou melhor, as ladainhas da direita e da classe média a propósito do Bolsa-Família e congêneres, além da insuportável repetição, revelam, cada vez mais, não só o já batido preconceito de classe, mas um preocupante, estreito e ocioso espaço neuronal. É sempre a mesma história: comodismo, vagabundagem, populismo, clientelismo, esmola, compra de votos, etc. E as reações contra as argumentações contrárias às “críticas“ da direita e da classe média possuem, igualmente, a mesma e incansável nota: censura, cerceamento da liberdade de expressão, autoritarismo, etc. A esse nível quase não vale a pena o esforço de escrever e rechaçar tais disparates. Entretanto, um certo gosto pelo divertimento fácil e uma espécie de dever moral leva-nos para tal sacrifício.

Pouco adianta apresentar os efeitos benéficos, as estatísticas positivas, tais como a redução das taxas de desnutrição e mortalidade infantil, as aprovações e elogios internacionais ao Bolsa-Família e ao Fome Zero, pois a intolerância dos setores mais à direita da classe média não consiste em convicções intelectuais, mas em convicções morais, reativas. São, de fato, movidas por ressentimento, pelo gosto pela inferiorização dos outros e por tudo aquilo que de alguma maneira assegure aos seus próprios olhos um sentimento de poder e distinção social, intelectual, moral, em relação às populações pobres do país.

Na cabeça de alguns, certas classes, socialmente desvalorizadas, não podem exigir ou barganhar qualquer coisa, isto é, elas não gozam de reconhecimento moral nem legitimidade intelectual pra tal. Em outras palavras, no (falta) entendimento da direita e da classe média, é inadmissível, um absurdo, uma inversão de valores, que os pobres ponderem, negociem e valorizem suas energias produtivas, sua força de trabalho ou que almejem bens e serviços tidos como importantes e valiosos. O correto é que eles aceitem servilmente todas as condições que lhes forem postas. Afinal, quando se contrata um deles para algum serviço estar-se-ia, na verdade, prestando-lhes um favor, uma ajudinha a esses miseráveis ingratos. Recusar ser faxineira? “Que absurdo! Olha o comodismo, a preguiça! Eles não aceitam mais cortar a grama ao meio-dia por trinta reais! Culpa do governo!”.

A classe média não aceita a atitude dos trabalhadores pobres de poder elevar o semblante até um patamar de igualdade, de olhar, com dignidade, a todos segundo um plano horizontal. Atitude esta possibilitada graças à eficácia das políticas de redistribuição, como o Bolsa-Família, e de reconhecimento e inclusão, como as políticas de cotas.

Quando as classes socialmente desvalorizadas acumulam um certo capital social, graças a garantia de uma renda extra e por ter acesso à espaços e bens e recursos socialmente valorizados, e, por consequência, passam a agregar elementos outrora inimagináveis, isto desestabiliza a percepção hierárquica e o julgamento das classes sobre si mesmas e sobre as outras. Os pobres não são mais vistos, nem enxergam a si mesmos, objetivamente, como “sub-gente”, destinada a servir à classe média e a aceitar as remunerações pífias e todo tipo de condição e atividade subalterna. As disparidades objetivas que organizam o campo das diferenças, as disposições para subalternidade e as relações de hegemonia são abaladas. A única tática que resta, como exprime a marchinha, é a deslegitimação moral: “massa ociosa e contente”.

É muito curioso as valorações oportunistas acerca das relações entre o Estado e as classes sociais. Dinheiro do Estado para pobre é esmola, incentivo à preguiça, conquista de votos, etc. E quando o dinheiro do Estado é destinado para facilitar financiamentos, crédito, limitar as deduções fiscais sobre as atividades da classe média, ele é o que?

A reserva e a garantia de uma renda básica asseguram a possibilidade do manejamento reflexivo de elementos que, para perspectiva preconceituosa da classe média e da direita, são tidos como “estranho” e ilegítimo aos pobres. Como por exemplo, agregar como parte da negociação da força de trabalho elementos pessoais, como satisfação, prazer, tempo, condições de trabalho, valor da remuneração, etc. A conseqüência da ponderação desses aspectos, e outros mais - tais como, qualidade de vida, participação e a possibilidade de aquisição de bens de consumo - como elementos relevantes pelos segmentos mais pobres economicamente é o que incomoda. Ou seja, aquilo que possibilita um enxerga-se como igual, como sujeito de direitos, desestabilizando o que sustenta a diferenciação e o antagonismo sobre o quais se erguem os preconceitos e os estigmas.

O Bolsa-Família não produz comodismo, produz, entre outras coisas, uma maior valorização da força do trabalho, afinal, quando não se está desesperado por sobreviver, não se vende a força de trabalho por tão pouco ou por qualquer coisa. Produz condições mínimas para alargar o horizonte de expectativas para além da sobrevivência própria e dos familiares, e assim, poder tanto enfrentar os efeitos da degradação social quanto pressionar e exigir direitos sociais, medidas de proteção e acesso à serviços básicos e avançados e também condições de auxílio para consumir bens, etc. Desse modo, o destino que aos trabalhadores pobres era impingido de contentar-se em ser, segunda a expressão de Hannah Arendt, um Animal Laborans, ou seja, regidos pela total indistinção entre o ritmo de trabalho e o ritmo da sobrevivência biológica, é posto em xeque.

No que concerne a atitude do PT, em tentar vedar a execução da dita marchinha, apóio-a irrestritamente. Afinal de contas, trata-se de uma visível forma de manifestação de preconceito e depreciação gratuita. Assim como é imperativo coibir as manifestações de preconceito étnico, racial, de gênero, sexualidade, etc., por que se adotaria tratamento distinto nas expressões de preconceito de classe? Todas estas exprimem o mesmo e horrendo sentimento.

Alyson Thiago F. Freire

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Brasil se reafirma como maior consumidor mundial de agrotóxicos

Na safra de 2008/2009, o Brasil atingiu a marca de maior consumidor mundial de venenos agrícolas. Os agrotóxicos são feitos a partir de produtos de petróleo e de químicos não degradáveis e, portanto, depois de fabricados, permanecem na natureza.

A informação é da Rebia - Rede Brasileira de Informação ambiental, 15-02-2010.

Matam a biodiversidade representada pela variedade de vida vegetal e animal, afetam a fertilidade natural do solo (ao acabar com bactérias e nutrientes naturais), contaminam o lençol freático e a qualidade das águas da chuva - pois os venenos secantes evaporam para a atmosfera e depois regresssam com a chuva. Afetam também a qualidade dos alimentos, que quando ingeridos sistematicamente podem causar destruição das celulas e resultar em câncer .

Mas tudo isso não importa. A indústrias anunciam os dados com orgulho. Afinal, a eles apenas interessa os lucros! Certamente seus gerentes buscam apenas produtos orgânicos nas gôndolas dos supermercados, enquanto o povo é obrigado a engolir seus venenos.

O Brasil consumiu ao redor de 700 milhões de litros de veneno. Esses 700 milhões de litros foram apliados em 50 milhoes de hectares, equivalente a 14 litros por hectares, a maior media do mundo.





Retirado do Portal do Meio Ambiente. Clique aqui para maiores detalhes.

Afeganistão: ofensiva da OTAN já matou 17 civis

CABUL - A Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) informou que um ataque aéreo das forças matou cinco civis na província de Kandahar, sul do Afeganistão. O incidente desta segunda-feira, 15, se segue às mortes, no domingo, de 12 afegãos que foram atingidos por foguetes norte-americanos na província vizinha de Helmand. Cerca de 15 mil soldados norte-americanos, afegãos e de outros países estão em Helmand, no terceiro dia de uma grande ofensiva para recuperar a cidade de Marjah, atualmente sob controle do Taleban.

Fonte: Estadão.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Ah... o carnaval...




Neste cálido início de carnaval, caro leitor, lembra-te ao menos uma hora do dia de rir; de rir bastante, alto e com firme desdém, pois nesse carnaval teremos a alegria de testemunhar, salvo engano, um fato inédito em nosso país: a prisão de um governador. E sabê-lo que singular fato ocorre nos dias da festa de Momo é uma razão a mais para rir mais uma vez – e também beber algumas em homenagem ao senhor Roberto Arruda e, principalmente, ao ministro Marco Aurélio Melo que, ontem, negou o pedido de habeas-corpus. Celebremos, então! Que nossas horas sejam fartas de alegria e prazer e que para o senhor Arruda, na prisão, que elas sejam inclementes em seu passo vagaroso. Carpem diem!


*Imagem retirada do blog alma do beco. Arte de Gilson Nascimento.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Livros e Putas




Livros e Putas pode-se levar pra cama.

Livros e Putas entrecruzam o tempo. Dominam a noite como dia e o dia como a noite.

Ao ver Livros e Putas ninguém diz que os minutos são preciosos. Mas quem se deixa envolver mais de perto, só então nota como tem pressa.

Livros e Putas têm entre si, desde sempre, um amor infeliz.

Livros e Putas, cada um deles tem sua espécie de homens que vivem deles e os atormentam. Os livros, os criticos

Livros e Putas em casas públicas, para estudantes.

Livros e Putas, raramente vê seu fim alguem que os possui. Costumam desaparecer antes de perecer.

Livros e Putas gostam de voltar as costas quando se expoem.

Livros e Putas, velha peata, jovem devassa. Quantos livros não foram mal reputados, nos quais hoje a juventude deve aprender

Livros e Putas trazem suas rixas diante das pessoas.

Livros e Putas, notas de rodapé são para uns o que são, para outras, notas de dinheiro na meia
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Walter Benjamin. Rua de mão única In: Obras escolhidas vol II.

Poema de um dos mais extraordinários autores a quem tive o privilégio de saborear as alegrias e as amarguras da inteligência, rara e fina inteligência. Por diversas vezes, seus fragmentos tornaram os dias mais suportáveis e as noites solitárias por eles foram estancadas. Walter Benjamin é para se aplicar nas veias!

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Entrevista com Christhophe Dejours: "O suicídio no trabalho é uma mensagem brutal".

O suicídio é um tema caro à Sociologia. Aliás, poder-se-ia dizer um tema fundante. Afinal de contas, foi graças ao estudo do sociólogo Emile Durkheim, O suicídio, publicado no já distante ano de 1897, que a Sociologia obteve o reconhecimento, à época, como disciplina científica e como um saber especializado; requisitos sem os quais sua institucionalização acadêmica, anos mais tarde, teria sido impossível.

Ano passado, na França, uma série de suicídios no local de trabalho, na empresa France Telecom, mobilizou, durante certo tempo, a atenção da mídia. Sobre esses incidentes, o psicanalista e professor no Conservatoire National des Arts ET Métiers, em Paris, Christhophe Dejours, publicou recentemente o livro intitulado Suicide ET Travail: Que Faire?, no qual investiga a relação entre trabalho, sofrimento e transtornos mentais. Na entrevista, o psicanalista francês discorre sobre as transformações da gestão e avaliação do trabalho e seus efeitos na saúde mental dos indivíduos, ressaltando como o desmantelamento da solidariedade e dos laços sociais pelos gestores e pelas últimas transformações nos procedimentos de gestão e avaliação laboral gerou uma situação de sofrimento e doenças ligadas ao trabalho e ao seu ambiente. Segue abaixo a interessante entrevista, publicada no PÚBLICO. Aproveitem!


O suicídio ligado ao trabalho é um fenómeno novo?

O que é muito novo é a emergência de suicídios e de tentativas de suicídio no próprio local de trabalho. Apareceu em França há apenas 12, 13 anos. E não só em França – as primeiras investigações foram feitas na Bélgica, nas linhas de montagem de automóveis alemães. É um fenómeno que atinge todos os países ocidentais. O facto de as pessoas irem suicidar-se no local de trabalho tem obviamente um significado. É uma mensagem extremamente brutal, a pior do que se possa imaginar – mas não é uma chantagem, porque essas pessoas não ganham nada com o seu suicídio. É dirigida à comunidade de trabalho, aos colegas, ao chefe, aos subalternos, à empresa. Toda a questão reside em descodificar essa mensagem.


Afecta certas categorias de trabalhadores mais do que outras?

Na minha experiência, há suicídios em todas as categorias – nas linhas de montagem, entre os quadros superiores das telecomunicações, entre os bancários, nos trabalhadores dos serviços, nas actividades industriais, na agricultura.
No passado, não havia suicídios ligados ao trabalho na indústria. Eram os agricultores que se suicidavam por causa do trabalho – os assalariados agrícolas e os pequenos proprietários cuja actividade tinha sido destruída pela concorrência das grandes explorações. Ainda há suicídios no mundo agrícola.


O que é que mudou nas empresas?

A organização do trabalho. Para nós, clínicos, o que mudou foram principalmente três coisas: a introdução de novos métodos de avaliação do trabalho, em particular a avaliação individual do desempenho; a introdução de técnicas ligadas à chamada “qualidade total”; e o outsourcing, que tornou o trabalho mais precário.
A avaliação individual é uma técnica extremamente poderosa que modificou totalmente o mundo do trabalho, porque pôs em concorrência os serviços, as empresas, as sucursais – e também os indivíduos. E se estiver associada quer a prémios ou promoções, quer a ameaças em relação à manutenção do emprego, isso gera o medo. E como as pessoas estão agora a competir entre elas, o êxito dos colegas constitui uma ameaça, altera profundamente as relações no trabalho: “O que quero é que os outros não consigam fazer bem o seu trabalho.”
Muito rapidamente, as pessoas aprendem a sonegar informação, a fazer circular boatos e, aos poucos, todos os elos que existiam até aí – a atenção aos outros, a consideração, a ajuda mútua – acabam por ser destruídos. As pessoas já não se falam, já não olham umas para as outras. E quando uma delas é vítima de uma injustiça, quando é escolhida como alvo de um assédio, ninguém se mexe…


Mas o assédio no trabalho é novo?

Não, mas a diferença é que, antes, as pessoas não adoeciam. O que mudou não foi o assédio, o que mudou é que as solidariedades desapareceram. Quando alguém era assediado, beneficiava do olhar dos outros, da ajuda dos outros, ou simplesmente do testemunho dos outros. Agora estão sós perante o assediador – é isso que é particularmente difícil de suportar. O mais difícil em tudo isto não é o facto de ser assediado, mas o facto de viver uma traição – a traição dos outros. Descobrimos de repente que as pessoas com quem trabalhamos há anos são cobardes, que se recusam a testemunhar, que nos evitam, que não querem falar connosco. Aí é que se torna difícil sair do poço, sobretudo para os que gostam do seu trabalho, para os mais envolvidos profissionalmente. Muitas vezes, a empresa pediu-lhes sacrifícios importantes, em termos de sobrecarga de trabalho, de ritmo de trabalho, de objectivos a atingir. E até lhes pode ter pedido (o que é algo de relativamente novo) para fazerem coisas que vão contra a sua ética de trabalho, que moralmente desaprovam.


Qual é o perfil das pessoas que são alvo de assédio?

São justamente pessoas que acreditam no seu trabalho, que estão envolvidas e que, quando começam a ser censuradas de forma injusta, são muito vulneráveis. Por outro lado, são frequentemente pessoas muito honestas e algo ingénuas. Portanto, quando lhes pedem coisas que vão contra as regras da profissão, contra a lei e os regulamentos, contra o código do trabalho, recusam-se a fazê-las. Por exemplo, recusam-se a assinar um balanço contabilista manipulado. E em vez de ficarem caladas, dizem-no bem alto. Os colegas não dizem nada, já perceberam há muito tempo como as coisas funcionam na empresa, já há muito que desviaram o olhar. Toda a gente é cúmplice. Mas o tipo empenhado, honesto e algo ingénuo continua a falar. Não devia ter insistido. E como falou à frente de todos, torna-se um alvo. O chefe vai mostrar a todos quão impensável é dizer abertamente coisas que não devem aparecer nos relatórios de actividade.
Um único caso de assédio tem um efeito extremamente potente sobre toda a comunidade de uma empresa. Uma mulher está a ser assediada e vai ser destruída, uma situação de uma total injustiça; ninguém se mexe, mas todos ficam ainda com mais medo do que antes. O medo instala-se. Com um único assédio, consegue-se dominar o colectivo de trabalho todo. Por isso, é importante, ao contrário do que se diz, que o assédio seja bem visível para todos. Há técnicas que são ensinadas, que fazem parte da formação em matéria de assédio, com psicólogos a fazer essa formação.


Uma formação para o assédio?

Exactamente. Há estágios para aprenderem essas técnicas. Posso contar, por exemplo, o caso de um estágio de formação em França em que, no início, cada um dos 15 participantes, todos eles quadros superiores, recebeu um gatinho. O estágio durou uma semana e, durante essa semana, cada participante tinha de tomar conta do seu gatinho. Como é óbvio, as pessoas afeiçoaram-se ao seu gato, cada um falava do seu gato durante as reuniões, etc.. E, no fim do estágio, o director do estágio deu a todos a ordem de… matar o seu gato.


Voltando ao perfil do assediado, é perigoso acreditar realmente no seu trabalho?

É. O que vemos é que, hoje em dia, envolver-se demasiado no seu trabalho representa um verdadeiro perigo. Mas, ao mesmo tempo, não pode haver inteligência no trabalho sem envolvimento pessoal – sem um envolvimento total.
Isso gera, aliás, um dilema terrível, nomeadamente em relação aos nossos filhos. As pessoas suicidam-se no trabalho, portanto não podemos dizer aos nossos filhos, como os nossos pais nos disseram a nós, que é graças ao trabalho que nos podemos emancipar e realizar-nos pessoalmente. Hoje, vemo-nos obrigados a dizer aos nossos filhos que é preciso trabalhar, mas não muito. É uma mensagem totalmente contraditória.


E os sindicatos?

Penso que os sindicatos foram em parte destruídos pela evolução da organização do trabalho. Não se opuseram à introdução dos novos métodos de avaliação. Mesmo os trabalhadores sindicalizados viram-se presos numa dinâmica em que aceitaram compromissos com a direcção. Em França, a sindicalização diminuiu imenso – as pessoas já não acreditam nos sindicatos porque conhecem as suas práticas desleais.


Como distinguir um suicídio ligado ao trabalho de um suicídio devido a outras causas?

É uma pergunta à qual nem sempre é possível responder. Hoje em dia, não somos capazes de esclarecer todos os suicídios no trabalho. Mas há casos em que é indiscutível que o que está em causa é o trabalho. Quando as pessoas se matam no local de trabalho, não há dúvida de que o trabalho está em causa. Quando o suicídio acontece fora do local de trabalho e a pessoa deixa cartas, um diário, onde explica por que se suicida, também não há dúvidas – são documentos aterradores. Mas quando as pessoas se suicidam fora do local do trabalho e não deixam uma nota, é muito complicado fazer a distinção. Porém, às vezes é possível. Um caso recente – e uma das minhas vitórias pessoais – foi julgado antes do Natal, em Paris. Foi um processo bastante longo contra a Renault por causa do suicídio de vários engenheiros e cientistas altamente qualificados que trabalhavam na concepção dos veículos, num centro de pesquisas da empresa em Guyancourt, perto de Paris.


Quando é que isso aconteceu?

Em 2006-2007. Houve cinco suicídios consecutivos; quatro atiraram-se do topo de umas escadas interiores, do quinto andar, à frente dos colegas, num local com muita passagem à hora do almoço. Mas um deles – aliás de origem portuguesa – não se suicidou no local do trabalho. Era muitíssimo utilizado pela Renault nas discussões e negociações sobre novos modelos e produção de peças no Brasil. Foi utilizado, explorado de forma aterradora. Pediam-lhe constantemente para ir ao Brasil e o homem estava exausto por causa da diferença horária. Era uma pessoa totalmente dedicada, tinha mesmo feito coisas sem ninguém lhe pedir, como traduzir documentos técnicos para português, para tentar ganhar o mercado brasileiro para a empresa. A dada altura, teve uma depressão bastante grave e acabou por se suicidar.
A viúva processou a Renault, que em Dezembro acabou por ser condenada por “falta imperdoável do empregador” [conceito do direito da segurança social em França], por não ter tomado as devidas precauções.
Foi um acontecimento importante porque, pela primeira vez, uma grande multinacional foi condenada em virtude das suas práticas inadmissíveis. Os advogados do trabalho apoiaram-se muito nos resultados científicos do meu laboratório. O acórdão do tribunal tinha 25 páginas e as provas foram consideradas esmagadoras. Havia e-mails onde o engenheiro dizia que já não aguentava mais – e que a empresa fez desaparecer limpando o disco rígido do seu computador. Mas ele tinha cópias dos documentos no seu computador de casa. A argumentação foi imparável.


Mesmo assim, as empresas continuam a dizer que os suicídios dos seus funcionários têm a ver com a vida privada e não com o trabalho.

Toda a gente tem problemas pessoais. Portanto, quando alguém diz que uma pessoa se suicidou por razões pessoais, não está totalmente errado. Se procurarmos bem, vamos acabar por encontrar, na maioria dos casos, sinais precursores, sinais de fragilidade. Há quem já tenha estado doente, há quem tenha tido episódios depressivos no passado. É preciso fazer uma investigação muito aprofundada.
Mas se a empresa pretender provar que a crise depressiva de uma pessoa se deve a problemas pessoais, vai ter de explicar por que é que, durante 10, 15, 20 anos, essa pessoa, apesar das suas fragilidades, funcionou bem no trabalho e não adoeceu.


Mas como é que o trabalho pode conduzir ao suicídio? Só acontece a pessoas com determinada vulnerabilidade?

Só muito recentemente é que percebi que uma pessoa podia ser levada ao suicídio sem que tivesse até ali apresentado qualquer sinal de vulnerabilidade psicopatológica. Fiquei extremamente surpreendido com um caso em especial, do qual não posso falar muito aqui, porque ainda não foi julgado, de uma mulher que se suicidou na sequência de um assédio no trabalho.
A Polícia Judiciária [francesa] tinha interrogado os seus colegas de trabalho e, como a ordem vinha de um juiz, as pessoas falaram. Foram 40 depoimentos que descreviam a maneira como essa mulher tinha sido tratada pelo patrão (apenas uma contradiz as restantes 39). E o que emerge é que, devido ao assédio, ela caiu num estado psicopatológico muito parecido com um acesso de melancolia.
Ora, o que mais me espantou, quando procurei sinais precursores, é que não encontrei absolutamente nada. E, pela primeira vez, comecei a pensar que, em certas situações, quando uma pessoa que não é melancólica é escolhida como alvo de assédio, é possível fabricar, desencadear, uma verdadeira depressão em tudo igual à melancolia. Quando essa pessoa se vai abaixo, tem uma depressão, autodesvaloriza-se, torna-se pessimista, pensa que não vale nada, que merece realmente morrer.
Era uma mulher hiperbrilhante, muitíssimo apreciada, muito envolvida, imaginativa, produtiva. Tinha duas crianças óptimas e um marido excepcional. Falei com os seus amigos, o marido, a mãe. Não encontrei nenhum sinal precursor, nem sequer na sua infância.


O caso da France Télécom foi muito mediático, com 25 suicídios. O suicídio é mais frequente nas grandes empresas?

Não. Nas grandes empresas pode ser mais visível, mas há também muitas pequenas empresas onde as coisas correm muito mal, onde os critérios são incrivelmente arbitrários e onde o assédio pode ser pior. Nas grandes empresas, subsiste por vezes uma presença sindical que faz com que os casos venham a público. Foi assim na France Télécom. Mas não acredito que a destruição actual do mundo do trabalho esteja a acontecer apenas nalgumas grandes multinacionais. E é importante salientar que também há multinacionais onde as coisas correm bem.


O que é exactamente "qualidade total"?

É uma segunda medida que foi introduzida na sequência da avaliação individual. Acontece que, quando se faz a avaliação individual do desempenho, está-se a querer avaliar algo, o trabalho, que não é possível avaliar de forma quantitativa, objectiva, através de medições. Portanto, o que está a ser medido na avaliação não é o trabalho. No melhor dos casos, está-se a medir o resultado do trabalho. Mas isso não é a mesma coisa. Não existe uma relação de proporcionalidade entre o trabalho e o resultado do trabalho.
É como se em vez de olhar para o conteúdo dos artigos de um jornalista, apenas se contasse o número de artigos que esse jornalista escreveu. Há quem escreva artigos todos os dias, mas enfim... é para contar que houve um acidente de viação ou outra coisa qualquer. Uma única entrevista, como esta por exemplo, demora muito mais tempo a escrever e, para fazer as coisas seriamente, vai implicar que o jornalista escreva entretanto menos artigos. Hoje em dia, julga-se os cientistas pelo número de artigos que publicam. Mas isso não reflecte o trabalho do cientista, que talvez esteja a fazer um trabalho difícil e não tenha publicado durante vários anos porque não conseguiu obter resultados.
Passados uns tempos, surgem queixas a dizer que a qualidade [da produção ou do serviço] está a degradar-se. Então, para além das avaliações, os gestores começam a controlar a qualidade e declaram como objectivo a “qualidade total”. Não conhecem os ofícios, mas vão definir pontos de controlo da qualidade. É verdadeiramente alucinante.
Para além de que declarar a qualidade total é catastrófico, justamente porque a qualidade total é um ideal. É importante ter o ideal da qualidade total, ter o ideal do “zero-defeitos”, do “zero-acidentes”, mas apenas como ideal (...).


Isso é extremamente grave.

É. E em medicina passa-se a mesma coisa. Faz-se batota. Hoje, existem nos hospitais as chamadas “conferências de consenso” – acho que existem em toda a Europa – onde são feitas recomendações precisas para o tratamento de tal ou tal doença. E quando um médico recebe um doente, tem de teclar no computador para ver o que foi estabelecido pela conferência de consenso. O médico, que tem o doente à sua frente, pensa que essa não é a boa abordagem – porque sabe que o doente tem problemas com a mulher, com os filhos e não vai conseguir fazer o tratamento recomendado. Mas sabe também que se não fizer o que está lá escrito, e se por acaso as coisas derem para o torto, poderá haver um inquérito, a pedido da família ou de um gestor, e vão dizer que foi o médico que não fez o que devia. O problema da qualidade total é que obriga muitos de nós a viver essa experiência atroz que consiste em fazer o nosso trabalho de uma forma que nos envergonha.


Há muitos suicídios entre os médicos?

Cada vez mais. Há especialidades com mais suicídios do que outras – nomeadamente entre os médicos reanimadores. Em França é uma verdadeira hecatombe: é sabido que a profissão de anestesista-reanimador é das que têm maior taxa de suicídios. Nesta especialidade, os riscos de ser-se atacado em tribunal porque alguém morreu são tão elevados que os médicos se protegem seguindo as instruções. Mesmo que tenham a íntima convicção de que não era isso que deveriam fazer. Chegámos a esse ponto.
É uma situação insuportável e há médicos que não aguentam ver um doente morrer porque tiveram medo de que isso se virasse contra eles. “Fiz o que estava escrito e o doente morreu. Matei o doente.” Há cada vez mais reanimadores que se confrontam com esta situação. Ainda por cima os cirurgiões atiram sempre as dificuldades que encontram nas operações para cima do reanimador. Sempre. Cada vez que acontece qualquer coisa, é porque o anestesista não adormeceu bem o doente, ou não o acordou correctamente, ou não soube restabelecer a pressão arterial. O cirurgião nunca admitirá que falhou nas suturas e que por isso o doente se esvaiu em sangue.


Não haverá por detrás desta nova organização do trabalho objectivos de controlo das pessoas, de redução da liberdade individual, que extravasam o âmbito empresarial?

É uma questão difícil. Acho que qualquer método de organização do trabalho é ao mesmo tempo um método de dominação. Não é possível dissociar as duas coisas. Há 40 anos que os sociólogos trabalham nisto. Todos os métodos de organização do trabalho visam uma divisão das tarefas, por razões técnicas, de racionalidade, de gestão. Mas não há nenhuma divisão técnica do trabalho que não venha acompanhada de um sistema de controlo, em virtude do qual as pessoas vão cumprir as ordens.
Há tecnologias da dominação. O sistema de Taylor, ou taylorismo, é essencialmente um método de dominação e não um método de trabalho. O método de Ford é um método de trabalho.
Contudo, não penso que a intenção do patronato (francês, em particular), nem dos homens de Estado seja instaurar o totalitarismo. Mas é indubitável que introduzem métodos de dominação, através da organização do trabalho que, de facto, destroem o mundo social.


Uma empresa que defendesse os princípios da liberdade, da igualdade e da fraternidade conseguiria sobreviver no actual contexto de mercado?

Hoje, estou em condições de responder pela afirmativa, porque tenho trabalhado com algumas empresas assim. Ao contrário do que se pensa, certas empresas e alguns patrões não participam do cinismo geral e pensam que a empresa não é só uma máquina de produzir e de ganhar dinheiro, mas também que há qualquer coisa de nobre na produção, que não pode ser posta de lado. Um exemplo fácil de perceber são os serviços públicos, cuja ética é permitir que os pobres sejam tão bem servidos como os ricos – que tenham aquecimento, telefone, electricidade. É possível, portanto, trabalhar no sentido da igualdade.
Há também muita gente que acha que produz coisas boas – os aviões, por exemplo, são coisas belas, são um sucesso tecnológico, podem progredir no sentido da protecção do ambiente. O lucro não é a única preocupação destas pessoas.
E, entre os empresários, há pessoas assim – não muitas, mas há. Pessoas muito instruídas que respeitam esse aspecto nobre. E, na sequência das histórias de suicídios, alguns desses empresários vieram ter comigo porque queriam repensar a avaliação do desempenho. Comecei a trabalhar com eles e está a dar resultados positivos.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Partidos querem que TSE derrube regra que proíbe doação oculta

Luana Lourenço
Repórter da Agência Brasil



Brasília - Os partidos DEM, PT e PSDB se uniram contra a tentativa do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de pôr fim às chamadas doações ocultas para financiamento de campanhas. A resolução do TSE, que está em consulta pública, pretende impedir a doação de recursos eleitorais que não permitam a identificação dos doadores e dos candidatos beneficiados.

Na ação, encaminhada hoje (4) ao Tribunal, os partidos alegam que a exigência de identificação dos doadores e de que candidatos receberam o dinheiro “é missão ingrata e impossível”.

“A captação de recursos de diversos doadores e os eventuais repasses a diversos donatários não se dá a um só tempo e em quantias coincidentes, de modo a possibilitar dizer qual candidato recebeu especificamente de qual doador”, afirmam na ação.

No documento, DEM, PT e PSDB também pedem mudanças na proposta do TSE de obrigar os partidos a criar uma conta bancária específica para movimentação de recursos de campanhas eleitorais. Pelas regras atuais, os candidatos e os comitês financeiros têm que ter contas para essa finalidade, mas não os partidos.

Para os autores da ação, a mudança contraria a Lei de Eleições ao tornar os partidos políticos “agentes de campanha eleitoral”, obrigados a prestar contas à Justiça Eleitoral.

Na contramão dos grandes partidos, o P-SOL encaminhou ao presidente do TSE, ministro Carlos Ayres Britto, uma manifestação de apoio às propostas. O partido argumenta que a iniciativa poderá “tornar mais transparentes as doações feitas aos candidatos no período eleitoral”.

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Por mais que, direita e esquerda representem, mais do que posições distintas no interior do espaço político, percepções distintas da disposição desse espaço político, as vezes, quando convém e pelas caracteristicas de contingência, esse campo de percepções torna-se esquizofrênico. Na disputa pela preservação da disposição do poder que favorece a ambos, direita e esquerda, ainda que provisoriamente, compõem um mesmo lado, como sugere a reportagem acima..

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

O que é isso companheiro? Lula, democracia e a questão do aborto




O III Programa Nacional de Direitos Humanos, divulgado há poucas semanas pelo governo, para além das polêmicas já esperadas, é o resultado dos esforços e do exercício democrático dos movimentos sociais, ONG’s, grupos e agentes políticos envolvidos, que, nos últimos anos, intensificaram o debate, organizaram conferências, elaboraram propostas, diretrizes, linhas de orientação político-programática com o objetivo de fortalecer e consolidar avanços democráticos. Nunca no Brasil, a vitalidade política dos DH esteve tão em evidência e firme, como nas últimas semanas. A própria reação conservadora ao PNDH III - da igreja católica aos proprietários dos meios de comunicação, passando pelos militares e o agronegócio - resulta em um dado a mais para o argumento acima, e, notadamente, é a prova do caráter progressista e da coragem do programa e seus elaboradores. Portanto, antes de qualquer coisa, há de se reconhecer que o PNDH III possui de saída um mérito indispensável à democracia; a agitação das inteligências, da crítica, do debate e a coragem de interpelar a sociedade.

Entretanto, a hesitação do presidente Lula, com respeito a descriminalização do aborto, expresso na fala contemporizadora do ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos Paulo Vannuchi, significa um pé no freio no processo de amadurecimento e aperfeiçoamento de uma esfera pública, regida por uma moralidade laica e republicana, que o PNDH III sugere representar. Obviamente, o recuo do presidente não significa a paralisação da luta pela despenalização do aborto, esta continuará. Entretanto, tal gesto possui efeitos perversos, de represamento daquele processo de aperfeiçoamento democrático, ao manter, sob o véu da norma, um dogma, sobretudo religioso e permeado de preconceitos, institucionalizado.

Apesar de concordar com a afirmação realizada em 2007, pelo ministro da saúde José Gomes Temporão, de que o aborto é uma questão de saúde pública, e sobre a necessidade, como defendem alguns sociólogos, antropólogos e militantes, de deslocar o debate sobre o aborto do campo moral para o campo da saúde pública, dos DH, do direito à autonomia reprodutiva das mulheres, etc. Porém, convém precisar um pouco as coisas no tocante ao campo da moral. A discussão sobre a descriminalização do aborto deve sim, a meu ver, está no campo da moral, não acerca da veracidade e justeza das interpretações de morais particulares, religiosas, mas antes a propósito da constituição de uma moral pública, ou melhor, de uma moralidade pública que funcione como balizador normativo dos conflitos e da pluralidade de crenças. A meu ver, a atitude do governo em relação à questão do aborto, embora não jogue tudo por água abaixo, dificulta a instituição de uma moralidade pública e de um espaço público assentados em um paradigma tenazmente progressista.

Se, por um lado, o Estado não deve se confundir com religião, isto é, deve assegurar seu caráter laico, por outro, todavia, isto não quer dizer que ele deva ser neutro em relações a valores morais, crenças, princípios de justiça, visões de mundo. Pelo contrário, o Estado, por meio de suas instituições e normas, deve fomentar valores que assegurem as condições de igualdade e liberdade para a autodeterminação individual das decisões e que auxiliem no desenvolvimento das faculdades que possibilitam e dão corpo as escolhas individuais e coletivas. Tal tarefa implica num combate tanto no mundo das relações sociais quanto no mundo da norma e das instituições. Ou seja, é necessário, sobretudo, através de uma normatividade ligada ao princípio de dignidade e à concepção de universalização dos direitos, da percepção de todos os indivíduos como iguais, contestar e interpelar a sociedade e seus segmentos acerca do caráter democrático de suas crenças e interpretações do mundo, sob, obviamente, a garantia da liberdade, dentro dos devidos limites, de exercício e manifestação dessas.

O primeiro passo para essa interpelação é desinstitucionalizar as práticas discriminatórias e de desprivilegio contra grupos vulneráveis, expurgando das leis os valores, as representações sociais e as crenças que sustentam a agressão à liberdade, à equidade, ao reconhecimento e à dignidade desses grupos. Os obstáculos à democracia, à tolerância e à solidariedade arraigados nas relações sociais sob a forma de crenças, valores morais, preconceitos culturais e representações sociais depreciadoras, não podem de forma alguma encontrar abrigo, ainda que veladamente, nas leis, principalmente, no código penal.

A criminalização do aborto é um exemplo cristalino de como no Brasil tal desinstitucionalização ainda é incipiente. Além do mais, tal fato indica, creio, a pobreza e a estreiteza da democracia no Brasil, na medida em que a insistência absurda na criminalização do aborto significa a manutenção, sustentada pelo Estado, de uma forma moral e legal de privação à direitos: como o direito à integridade física e emocional, a uma vida digna e o direito à assistência. Manutenção de uma forma legitimada de sofrimento e de não-reconhecimento que danifica e ameaça a saúde das mulheres, aumenta as taxas de abandono de bebês e de mortalidade materna, sobretudo nos setores mais pobres, e impede às mulheres o direito de exercer à autodeterminação sobre seus corpos e suas gestações. Desse modo, por consequência, percebe-se o quão distante estamos de uma democracia qualitativamente rica e progressista.

A preponderância do catolicismo no espírito da população não pode ser utilizada como um embargo para a não-liberalização do aborto, ou a justificação da condescendência do Estado. Na capital mexicana – Cidade do México -, cidade composta esmagadoramente por católicos, desde abril de 2007, e com a devida ratificação da Suprema Corte daquele país, vigora a descriminalização do aborto com devida rede de serviços de suporte.

O recuo de Lula esbate, suaviza uma preciosa e provável conseqüência do PNDH III, a saber: a qualificação e o enriquecimento político e democrático da sociedade e da chamada opinião pública brasileira. Conjuntamente com as outras diretrizes do PNDH III, a despenalização do aborto significaria um novo salto em termos de maturidade política e democrática de nossa sociedade; um grande e largo passo em direção a um novo ethos, graças ao qual, talvez, estaríamos mais próximos do entendimento acerca da urgência de eliminar todas as formas de subordinação e da necessidade do tratar com equidade indivíduos e grupos vulneráveis.

A luta e o debate político acerca de formas normativas capazes de atender as demandas de direitos – direitos sexuais, reprodutivos, por exemplo – e assegurar o devido reconhecimento e proteção a determinados grupos e práticas – minorias étnicas, gênero, homossexualidade, etc. – estão em um contínuo processo de acirramento em boa parte das sociedades ditas avançadas. O PNDH III é a materialização desse processo de acirramento no Brasil. E, como qualquer documento relativo aos Direitos Humanos, ele é mais que o empenhamento político daqueles cujas vidas são - sejam pelos corpos que habitam, pelos desejos que carregam ou pelas peles que sustentam - marcadas pelas feridas do desrespeito, do não-reconhecimento e da deslegitimação moral. Na verdade, é antes o testemunho irrefutável de nossa violência e injustiça que, muitas vezes, ocultamos de nós mesmos. A violência, a injustiça e a posterior obstinação e coragem política das vítimas em enfrentá-las decisamente para seu impedimento futuro são a parteira de todo documento relativo aos Direitos Humanos.

Alyson Thiago F. Freire

Links:

Sobre o recuo do governo na questão do aborto e a revisão desse ponto no PNDH III

clique aqui

Algumas informações estatísticas sobre o aborto:

http://www.womenonwaves.org

PNDH III

http://portal.mj.gov.br/sedh/pndh3/pndh3.pdf