domingo, 29 de agosto de 2010

A política do espelho e as eleições



Nesses dias de comícios, carreatas e propagandas eleitorais, a vida diária é tomada por um apinhado de suportes gráficos e digitais por meio dos quais as imagens dos candidatos pousam sem muita delicadeza sobre os nossos olhos; por todos os lados, folders, fotografias, jingles, bandeiras e cartazes atacam nossos sentidos. Normal, demasiado normal. Porém, essa normalidade biênica habituou-nos a tratar a iconografia eleitoral com irreflexão ou, então, como insignificância da qual, é verdade, retira-se mais subsídios para a gargalhada e a troça do que para a análise. É que os próprios objetivos políticos e procedimentos técnicos para tal exigem para construção e difusão da imagem certa dose de nivelamento rasteiro das diferenças e das inteligências. Por isso, os jingles, as imagens e slogans eleitorais são, poder-se-ia dizer, aliás, a produção discursiva em geral da cultura de massa, a rigor, vagos, genéricos e vazios, assim como a idéia que esses supõem de seus receptores – o “povo”, os “eleitores”, os “espectadores”, a “opinião pública” etc. Dessa maneira, a irreflexão e a insignificância a priori dessas estratégias imagéticas e marketeiras se constituem como tais no momento mesmo de sua elaboração.

A análise, a investigação mais sistemática ou a digressão intelectual sem maiores propósitos é aquilo mesmo que pode transformar a suposta insignificância da espectacularização da política e das eleições em qualquer coisa de relevante, a propósito da qual vale à pena escrever alguns parágrafos ou conversar alguns minutos. Vamos lá, então! Evidentemente, as imagens em geral, sejam elas fixas, como na fotografia ou gravura, ou em movimento, como as imagens cinematográficas e televisivas, são capazes de afetar os sujeitos e as idéias; até que ponto elas fazem isso com sucesso segundo seus objetivos é um assunto que não tratarei aqui.

Os cartazes e as fotografias em que repousam as imagens dos candidatos visam algo muito simples e direto, a saber: estabelecer algum tipo de elo pessoal, mais ou menos íntimo, entre esses e os seus eleitores. O que se exprime nessas imagens não é de modo algum um programa de idéias ou projetos mas sim uma representação, uma mera idéia das motivações e disposições do candidato expressas desde o modo de vestir à maneira de sorrir e olhar capturadas pela fotografia. Em vez de um conjunto de propostas e problemas a serem debatidos, isto é, a política em certo sentido, a fotografia eleitoral visa condensar e transmitir, caricatamente, um ethos, uma maneira de ser do candidato, ou do partido do mesmo. A política é posta de lado em favor da representação de uma tipificação genérica de gestos, valores e atitudes com os quais os eleitores podem, com suas aspirações iludidas e esperanças vãs, se identificar. Nesse sentido, a imagem do candidato ou o ethos que sugere corporificar é, por um lado, uma espécie de isca pronta para fisgar e, por outro, um espelho que nos devolve a nossa própria miséria e desinteresse.

Assim, os cartazes, folders e bandeiras propõem os “bons moços”, “os simpáticos” que, retratados com aquele ar de espanto e convicção, prometem ser diferentes da sujeira costumeira dos demais; os candidatos cristãos ou “os puros de coração” geralmente são mostrados rodeados por seus belos filhos e por suas pudicas esposas. Emerge também o tipo “administrador competente e racional” de paletó, cabelo arrumado, caneta e óculos perscrutadores, apto a fazer prosperar, com racionalidade e ímpeto, as contas do estado de uma maneira moderna e empresarial. Esses olham diretamente, mas com ternura, numa foto de busto para acentuar o realismo de suas habilidades práticas como que de fato estivessem à nossa frente. Há também a iconografia do candidato “chefe de família”, cidadão viril e obediente, dotado da única firmeza, coerência e hombridade necessária e incorruptível para elevar à pátria ao seu destino; há o “idealista”, retratado, por sua vez, com o rosto erguido e o olhar nobremente dirigido àquele tempo, futuro ou passado, de inigualável distinção.

Enfim, os tipos são infindáveis. O que importa é atentar que a fotogenia eleitoral é um processo de simulacros, de duplicação, isto é, imagens que visam exprimir imagens. A ironia das coisas é que seu objetivo de suscitar a identificação só é eficaz na medida em que conta com nossa cumplicidade, ou melhor, na medida em que, de certa maneira, vemos algo de familiar naquelas imagens. Ou seja, quando vemos a nós mesmos ali caricaturados, ainda que seja para rirmos e zombarmos de nossa própria imagem.



sábado, 21 de agosto de 2010

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

O menosprezo nosso de cada dia com a Educação e com os Professores



Há uma velha máxima segunda a qual podemos medir o grau de “civilização” de uma sociedade pelo tratamento que esta dispensa aos seus encarcerados. Poder-se-ia, acredito, afirmar o mesmo com relação ao tratamento dado aos professores. Sob esse ponto de vista, continuamos distante, bem distante, e numa posição particularmente difícil de qualquer ideal de civilidade e civilização.

Tal estado não é uma surpresa. Já há algumas longas décadas que a educação em nosso país não é um valor em si, nem para o Estado, nem para a sociedade. Ela não é um meio para algum fim coletivo, um projeto de país, de sociedade democrática, progressista, cultivada. Para uns, a educação é um meio para fins privados de status social e profissional; meio para garantir bons salários e empregos estáveis e estimados. A educação, a escola e a universidade, é qualquer coisa como que um obstáculo a ser superado para adquirir algum estilo de vida e emprego cobiçados, socialmente invejados e valorizados. Para o Estado, a educação é qualquer coisa por meio da qual se incrementa as estatísticas do país. É, novamente, um meio para barganhas políticas por meio da divulgação de rankings e cumprimento de metas. Quando muito, a educação é para alguns setores do Estado e do empresariado brasileiro algo no qual é preciso intervir, “modernizar”, para torná-la eficiente para fins que não são os da educação por si, mas antes, fins ligados à produção, ao lucro e a formação de obra qualificada. Eis aí o quadro cruel de nossos erros e vícios e o sinal inequívoco do desprezo latente com a educação.

Com respeito ao crédito ou, por assim dizer, a estima social dos professores, basta pensar que professor de ensino médio hoje é convidado como tal, por reconhecimento de sua função e valor, para discorrer sobre algo, para participar de algum programa, debate cultural, político, para, enfim, ser ouvido? Esses lugares são ocupados por especialistas e/ou professores universitários especialistas. O que sobra a para esses miseráveis esquecidos e sem visibilidade pública? Resta aos professores escolares tentar, ao menos, um lugar no Big Brother.

Mas há ainda um elemento maior de crueldade na atual situação dos professores: ao descrédito dos professores secundaristas, ao seu péssimo salário e condições de trabalho e ao volume de seu trabalho somem-se, agora, as tarefas hercúleas de tratar de questões tão delicadas e complexas como intolerância, xenofobia, racismo, sexismo e direitos humanos que a sociedade e o estado, muito educadamente, jogaram sobre os seus ombros. Dessa forma, não surpreende que as aulas acerca desses temas não passem de uma tautologia organizada, gaguejada, infelizmente, e com ecos da antiga disciplina de “moral cívica” pela Sociologia.

O curioso é que mesmo com um contingente maior de professores formados a cada ano, ainda assim, o número de professores nas escolas é deficitário. Pois, não existe, pelo salário ridículo – a média da hora-aula gira em torno de oito reais! -, pelas vexatórias condições de trabalho, pelo parco reconhecimento, pela carga horária abusiva, qualquer motivação para ingressar na escola.

Nesse ponto, o governo Lula deixou a desejar. Os investimentos do governo Lula, sob a batuta do Haddad, no campo da educação foram incrivelmente desconexos, pulverizados, pouco planejados, e, em quase nada, transformou a situação dos professores. O máximo que o governo fez pelos professores foi facilitar a aquisição de diplomas cujo testemunho de competência e vocação é muito pouco confiável. Uma vez em mãos, os diplomas serão utilizados por aqueles como um bilhete de ingresso para conseguir um “bico” temporário dando aulas enquanto esperam aparecer alguma coisa melhor; num cargo burocrático nas fileiras do Estado, via concurso público de preferência.

Mas então, quer dizer que tudo está perdido e aviltado? Não. Na verdade, quer dizer que há muito o que fazer. Já que as tonalidades e os acordes desse texto podem, com alguma generosidade do leitor e certa pretensão do autor, lembrar o cinza da Escola de Frankfurt, lembremos, pois, sua velha fórmula para encerrar: "Nosso princípio básico sempre foi: pessimismo teórico e otimismo prático" (Horkheimer).

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Professor da UnB critica a formação de doutores no Brasil

Para Marcelo Hermes, do Departamento de Biologia Celular da Universidade de Brasília, daqui a quinze anos o país não terá capacidade de fazer ciência de ponta "porque toda a geração se aposentou e os atuais não foram formados adequadamente"

No último dia 10, os consultores do Centro de Gestão de Estudos Estratégicos (CGEE), ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, apresentou um estudo que concluiu, dentre outros, uma taxa média de 11,9% de crescimento ao ano do número de doutores no país. Para falar da expansão da pós-graduação no Brasil, a ADUNB entrevistou o professor do Departamento de Biologia Celular, Marcelo Hermes. Confira a seguir:


- O estudo do CGEE mostrou que entre 1996 e 2008 o número de doutores titulados no Brasil cresceu 278%. O que o senhor acha da expansão da pós-graduação no país?

A minha visão é contrária à expansão da pós-graduação, especialmente do doutorado. A maioria das pessoas acreditam que o crescimento no Brasil - e na UnB também - é positivo. A taxa de aumento, alguns anos atrás, chegou a variar entre 10% e 20%, um crescimento chinês. E todo mundo comemora isso, exceto alguns poucos. Eu acho que é um crescimento exagerado. Aliás, responder isso agora ficou mais fácil, desde que o país entrou no chamado super aquecimento. Esse crescimento de 9% ao ano o qual o país não suporta, já que não temos estrutura física para tanto bussines. E a mesma coisa acontece na pós.


- Como é essa comparação?

Para se ter pós-graduação são necessárias quatro coisas: os alunos, que querem fazer pós; os professores, que vão orientar e dar aula; os cursos e, claro, dinheiro. Dinheiro não tem sido o problema. Então o que acontece? Você tem um crescimento muito grande tanto no número de cursos, de alunos e de orientadores. Um olhar desatento, pensa "que bom!". Não. Muito pelo contrário. O país está andando para trás com esse crescimento exagerado da pós. Primeiro porque os professores têm uma capacidade finita de orientar. Antigamente, cada professor orientava cinco, hoje está orientando dez alunos. E isso causa uma queda da qualidade. Obviamente, você não consegue dedicar suficiente tempo para orientar esses alunos. Para formar doutores é preciso um trabalho artesanal. Eles têm que ser treinados, pois podem se transformar em orientadores no futuro. Além disso, nem todos têm capacidade de ser orientadores. Tem muita gente que não tem a formação técnica e a capacidade de orientar. E nem todo mundo tem a qualificação necessária para ser orientador de doutorado. E com esse crescimento exagerado, a pós está pegando vários professores que não têm a menor capacidade de orientar, mesmo que não queiram, porque vão pegar uns pontos a mais, vão ter uma promoção. Outro problema é a existência de alunos que não deveriam estar fazendo doutorado, porque não tem capacidade para isso.


- O senhor acredita, então, que nem todo mundo está apto a fazer um doutorado?

Sim. É curioso que hoje já entendemos que nem todo mundo deve fazer graduação. O candidato à presidência José Serra, por exemplo, está fazendo campanha pelo ensino técnico. A ideia é: o que adianta sair com um diploma de administração se você não vai administrar uma empresa? O problema é o mesmo no doutorado. Sendo muito otimista, acredito que metade desses milhares de alunos de doutorado é composta pelos que eu chamo de "doutores mobral", o doutor analfabeto, que mal sabe ler um artigo científico, quanto mais escrever. O Brasil quer formar doutores, então vamos formar de verdade.


- Existe algum outro fator que contribua para a baixa qualidade na formação desses doutores?


Um fenômeno atual é o caso de pessoas que se formaram em faculdades particulares estarem ingressando na pós-graduação. São alunos mais fracos, isso é um fato. Mas estão entrando porque a pós está expandindo. Eu diria que 90% da produção de doutores vêm das faculdades públicas. E diria ainda que 90% dos que vêm das particulares são fracos. Essa produção vai crescer, depois vai estabilizar e lá para 2025 vai começar a cair, porque vai ser quando os atuais orientadores vão se aposentar. Pode até ser que a produção de teses continue a crescer infinitamente. Só que essa segunda geração de "doutores Mobral" vai produzir a tese e não publicar ciência, a menos que as revistas também baixem muito o nível.


- Não existe reprovação em pós-graduação?

Praticamente não tem. 99,9% das pessoas são aprovadas no mestrado. O orientador corrige a tese antes de entregar para banca e muitas vezes a própria banca também reescreve a tese. Então a tese acaba não sendo mais do aluno, não é mais personalizada.


- Qual o motivo para o investimento no crescimento da pós-graduação no Brasil?


Para ter produção de ciência deve existir mão de obra para fazer pesquisa. E quem é que faz a pesquisa? O pesquisador coordena; 80% das pesquisas são feitas por alunos de doutorado. São eles a mão de obra. A Capes entendeu que, ao expandir ao máximo o doutorado, maior a produção e quantidade de resultados. A cada ano aumenta o número de alunos formados doutores e a cada ano aumenta o número de trabalhos publicados. A própria Capes usa isso como propaganda para mostrar como é positivo esse aumento do doutorado no Brasil. Fazem questão de divulgar que o Brasil, a cada ano, eleva sua posição no ranking de países que produzem ciência, ocupando o 14º lugar. Mas isso é criminoso: você forma o doutor para produzir a média de dois artigos. E é isso o que ele vai fazer. Veja o custo do país para formar uma pessoa cujo objetivo é fazer dois artigos. E, muitas vezes, quem vai escrever é o orientador, pois ele não tem condição de fazer isso. Porque é tudo muito rápido, prazos restritos e tem que fazer funcionar. O crescimento da ciência e da pós-graduação brasileira é uma neoplasia, um tumor e um dia isso vai explodir.


- O senhor acha que essa situação se sustenta no futuro?

Seria sustentável se as pessoas vivessem para sempre. Mas as pessoas morrem, se aposentam. Essa política está completando 6, 7 anos. Começou na era FHC em que se estimulavam os pesquisadores a publicar. Na era Lula a pressão é para se publicar o máximo que puder. Então os estudantes que estão sendo formados agora e que estão sendo ultra pressionados não sabem fazer pesquisa direito. Está sendo uma formação a jato, massificada, e quero ver essas pessoas quando a minha geração morrer ou aposentar. Quero ver se eles vão dar conta do recado, porque eles não tiveram a formação necessária. E quero vê-los formando outros profissionais dentro dessa visão de mega-produção de baixa qualidade. A minha crítica não é à publicação. Sou "produtivista". Mas sou contra ao mega-produtivismo.


- O senhor acha que esse panorama é contornável?

O que está acontecendo no Brasil é uma farsa e uma fraude com dinheiro público. Se fosse algo que pudesse ser resolvido mudando a política, mas não é. Será um "dano irreparável". Eu diria hoje, sem problemas, que temos de 30 a 40 mil doutores "Mobral" no Brasil, disputando empregos. Qual o problema para o Brasil? Imaginamos o país daqui a quinze anos sem capacidade de fazer ciência de ponta porque toda a geração se aposentou e os atuais não foram formados adequadamente.


- Como o senhor acha que essa questão do crescimento da pós-graduação é vista pelos outros pesquisadores?


Eu fiz uma pesquisa, publicada em 2008 em uma revista canadense, em que entrevistei vários colegas pesquisadores, selecionados ao acaso, sobre o que eles achavam da pós-graduação brasileira em vários aspectos. A grande maioria, e eu comparei com alguns señiors latino americanos (mexicanos, argentinos e chilenos), critica esses problemas de regras muito ruins da pós-graduação, de overwork e má qualidade dos recém-doutores sendo formados. O doutor tem que ser qualificado. Na minha área (Ciências Biomédicas) ele tem que ser capaz de propor um projeto de pesquisa, de executar esse projeto de pesquisa, de montar uma equipe, de buscar verba para isso, de publicar em periódicos internacionais, de ser avaliador de outros artigos, de dar palestras. Eu e os pesquisadores que entrevistei acreditamos que a maioria que está sendo formada não tem mais essas qualificações. Algumas pessoas falam que a qualidade do ensino como um todo está caindo. Não gosto de analisar por esse viés, não sou sociólogo. As coisas são mais simples: a pressão é muito grande, não está havendo tempo de formar as pessoas. Por exemplo, tenho um amigo no campus da Unifesp, que é professor titular, que reprovou os 10 candidatos de um concurso para professor e todos tinham doutorado. Que "ótimos" doutores.


(ADUnB, 1/7)