sexta-feira, 12 de março de 2010

Castigo e Culpa II: A "má consciência".


Boa parte da obra de Nietzsche e de sua crítica à moral judaico-cristã e ao mundo moderno consiste numa tentativa de rastrear a proveniência e os incidentes da categoria de dívida e o sentimento de culpa. Isto que de tão sedimentado em nossas almas acaba por ser tratado como o mais natural dos sentimentos humanos. E que leva-nos a pensar que o sentir-se culpado seria uma espécie de inclinação natural da consciência, decorrente da função intrínseca ao homem de avaliar suas ações e escolhas, portanto prova do caráter intrinsecamente moral do homem. A culpa como consciência de si é também entendida, muitas vezes, como uma consequência, quase lógica, do castigo. O que reforça a tese anterior, pois ao ser castigado, o homem ponderaria acerca dos seus atos e tomá-los-ia como repreensíveis. Em Nietzsche, essa ingenuidade é um disparate. O sentimento de culpa,este voltar a si mesmo, auto-escrutínio, a consciência de si, nada tem de natural ou condição humana, tampouco culpa e castigo não possuem relação de correspondência. Ao contrário:

“Mas se considerarmos os milênios anteriores à história do homem, sem hesitação poderemos afirmar que o desenvolvimento do sentimento de culpa foi detido, mais do que tudo, precisamente pelo castigo – ao menos quanto às vítimas da violência punitiva. Não subestimemos em que medida a visão dos procedimentos judiciais e executivos impede o criminoso de sentir seu ato, seu gênero de ação, como repreensível em si: pois ele vê o mesmo gênero de ações praticado a serviço da justiça, aprovado e praticado com boa consciência: espionagem, fraude, uso de armadilhas, suborno, toda essa arte capciosa e trabalhosa dos policiais acusadores, e mais aquilo feito por princípio, sem o afeto sequer para desculpar, roubo, violência, difamação, aprisionamento, assassínio, tortura, tudo próprio dos diversos tipos de castigo – ações de modo algum reprovadas e condenadas em si pelos juízes, mas apenas em certo aspecto e utilização prática. A “má consciência”, a mais sinistra e mais interessante planta da nossa vegetação terrestre, não cresceu nesse terreno – de fato, por muitíssimo tempo os que julgavam e puniam não revelaram consciência de estar lidando com um “culpado”. Mas sim com um causador de danos, com um irresponsável fragmento do destino. E este, sobre o qual, também parte do destino, se abatia o castigo, não experimentava outra “aflição interior” que não a trazida pelo surgimento súbito de algo imprevisto, como um terrível evento natural, a queda de um bloco de granito contra o qual não há luta”.

Causador de danos, não um culpado. Acaso terrível, não uma dívida impagável. Para entendermos, a origem histórico-antropológica do sentimento de culpa, em Nietzsche, se faz necessário, primeiro, definir um outro conceito; “má consciência”. Sejamos direto: má consciência diz respeito ao sofrimento do homem com ele mesmo, provocado, segundo Nietzsche, pela dor da interiorização dos instintos, à sua inibição necessária e decorrente da socialização do animal humano. A má consciência é um produto histórico-fisiológico do processo de civilização, seu correlato trágico.

A instalação da ordem social e a domesticação dos humanos por um modo de existência gregário, mais ou menos racionalizado, fez com estes experimentassem um novo mundo, cujas habilidades requeridas fomentam disposições distintas daquelas oriundas dos velhos impulsos e instintos da caça, guerra, perseguição, prazer com o assalto do mundo das hordas. A ênfase se dá na formação de disposições intelectivas; pensar, inferir, calcular, combinar causas e efeitos, planejar, construir estrategicamente, regular, organizar, definir, distribuir, etc., oriundas das novas modalidades de práticas que constituem a forma de vida em sociedade. É a interiorização da vida instintiva que forma a “má consciência”:

“Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro – isto é o que chamo de interiorização do homem: é assim que no homem cresce o que depois se denomina sua "alma". Todo o mundo interior, originalmente delgado, como que entre duas membranas, foi se expandindo e se estendendo, adquirindo profundidade, largura e altura, na medida em que o homem foi inibido em sua descarga para fora.”.
A má consciência, o sofrimento do homem com ele mesmo, a dor pela interiorização e sublimação dos instintos, deve-se a um acontecimento histórico-antropológico que encerrou o humano no “âmbito da sociedade e da paz”; a queda do animal humano numa forma de existência sustentada especialmente sobre o intelecto e suas disposições. Acontecimento cujos desdobramentos incidiram, inclusive, em sua fisiologia e psicologia, mas que não significa extinção dos velhos instintos. À primeira vista o termo má consciência pode ludibriar ao se inferir, apressadamente, que se trata de um sintoma negativo, decadente, maléfico. Trata-se antes, do que, segundo Nietzsche, torna o homem um animal interessante, pois a má consciência é a responsável pela tensão paradoxal do homem entre forças em luta; instinto e razão, esquecimento e memória, etc. Da agonística dessas forças, da contradição, pode nascer elementos – forças – que intensificam nossa potência, a criação de valores afirmativos.

O sentimento de culpa é algo que será introduzido como manejamento da "má consciência". Ao primeiro, filósofo alemão atribuirá diversas proveniências. Em Genealogia da moral, encontraremos a noção de culpa como um sintoma do conceito muito material de dívida privada, na relação credor-devedor. A meu ver, esta é a suposição mais inconsistente acerca da noção de culpa e sua correlação com o castigo em Nietzsche. Outra suposição: a relação entre os vivos e os seus antepassados. Esta, em meu entendimento é a mais interessante e plausível. O temor em relação ao poder e ao julgamento dos antepassados, fundadores da comunidade tribal, mistura-se com o reconhecimento segundo o qual a comunidade e a estirpe só subsistem até então graças aos esforços, sacrifícios e realizações dos antepassados. Há, portanto, uma dívida, uma obrigação permanente e forçosa, para muito mais além do que uma espécie de sentimento de dívida, que deve ser paga igualmente com sacrifícios e realizações: conquistas, expansão, fartura, alegria, coesão, etc.

O fato dos antepassados perdurarem, “em sua sobrevida como espíritos poderosos, de conceder à estirpe vantagens e adiamentos a partir de sua força” faz da dívida algo permanente e crescente para a geração atual. O reconhecimento e o estar em débito misturam-se com o temor de não corresponder, de falhar de sorte a irritar e desonrar os ancestrais. Assim, atribui-se, paulatinamente, aos antepassados poderes que vão assumindo proporções gigantescas até que estes desapareçam “na treva de uma dimensão divina inquietante e inconcebível – o ancestral termina necessariamente transfigurado em deus”. Eis aí, para Nietzsche, tanto a origem dos deuses quanto os primórdios do sentimento de culpa; uma origem no medo!

A transformação radical do sentimento de culpa, isto que vincula o homem a si mesmo, às suas ações, isto que o faz pensar e objetivar um si por meio do perscrutar sentidos, juízos, inferir conseqüências de suas ações, provêm da invenção do Deus cristão. Um golpe de mestre, diz Nietzsche, o qual veremos no próximo post.

Um comentário:

  1. Nieztsche é um autor avesso a sistematizações. Seu pensamento é um tanto quanto fragmentário, distribuído por obras, paragrafos e aforismas por vezes distantes temporal e espacialmente. O seu texto,pelo aspecto didático e pontual, auxilia para quem está iniciando nesse autor.

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