segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Os "caretas" da OAB e a arte



No último dia 25, a 29º Bienal abriu as portas para o público em São Paulo. Entre as obras, uma série, em particular, causou certa polêmica. Trata-se da série “Inimigos” do artista pernambucano Gil Vicente, que, aliás, salvo engano, já foi exposta aqui em Natal há alguns anos atrás, Nela, numa espécie de autoretrato, o artista exibe a si mesmo com arma em punho prestes a alvejar altas personalidades da política mundial e brasileira; Lula, FHC, o Papa Bento XVI, o presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, a rainha da Inglaterra, Elizabeth II, e o ex-primeiro ministro de Israel, Ariel Sharon estão todos sob a mira e a fúria do “devir-terrorista” de Gil Vicente.

Evidentemente, como se trata de uma Mostra que goza, nos circuitos culturais do país, de notória visibilidade, a série de Gil Vicente, ao contrário da reação em outras localidades, não poderia deixar de levantar polêmicas. Logo, as vozes das boas consciências, a mais querida agência moral do indivíduo civilizado, como dizia Marcuse,  representadas pela OAB se ergueram contra os quadros do artista pernambucano. Acusaram-na de “apologia à violência e ao crime”, e a OAB sugeriu que as mesmas não fossem à público.

Quem quer esteja minimamente familiarizado com os stencil, tão comum nos muros e calçadas das grandes cidades, não há de se chocar e se incomodar com a mostra “Inimigos”. Porém, aos polidos advogados da Ordem, seguidores da estética da “admiração desinteressada” e do juízo do gosto – gosto de quem? cara pálida -, qualquer coisa mais ou menos subversiva, mais ou menos visceral, espicaça-lhes a pele e parece-lhes, aos seus olhos delicados, um atentado contra as regras da boa convivência.

O que os advogados não entendem é que os critérios de julgamento ou mesmo os critério de produção nas artes quase nada tem a ver com os bons sentimentos de respeito, piedade e dedicação ao próximo. E também que a arte não visa o convencimento – daí a impossibilidade da tal apologia. A política, a ciência e o direito são que visam tal intento. A arte propõe possibilidades de experiência, sensações, sentimentos que, por sua vez, podem ou não deflagrar crítica e novas formas de percepção e compreensão acerca de nosso mundo e de nossa situação.

Os advogados da OAB querem proteger as consciências indefesas dos pueris e tolos cidadãos, os quais, assim pensam os advogados, não gozam de discernimento suficiente e se deixam impressionar e se influenciar por qualquer coisa. Tratam-nos como crianças e idiotas, que necessitam ser tutelados por algum tipo de referência paterna que lhes inculquem o senso de discernimento entre o bem o mal, o certo e o errado, o lícito e o ílicito, o imoral e o moral. O Pai é a lei. Mais do que os quadros de Gil Vicente o que verdadeiramente violenta às consciência é essa vontade de tutela.

Gil Vicente quer o contrário; quer atacar às consciências, agitá-las, arrancá-las de sua letargia, jogar em suas caras a sua subserviência irrefletida. Quantos não queriam, por algum momento, estar ali de arma em riste apontada contra algum daqueles “líderes”? A arte pode fazer isso; dar consistência, relevo, cor e forma à desejos, sentimentos excêntricos e forças compulsivas que de outro modo ficariam soterrados em nosso inconsciente, sufucados pelo princípio de realidade. Ela recoloca em cena os desejos humanos em sua nudez mais crua, não para o artista mas para o público, a comunidade. Eis aí seu aspecto de ritual. O direito interdita. A arte sublima.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

O Conservadorismo ataca! Uma democracia sem povo

Ontem, um punhado de personalidades liberais e tucanas lançou um "Manifesto em Defesa da Democracia" - leia na íntegra aqui. A ameaça à democracia? Lula e o PT, evidentemente. O assunto? A mesma e enfadonha ladainha, sem nenhuma substância relevante para um debate intelectual e político de fato; isso que torna os principais jornais e revistas do país tão desinteressantes.

Entre os ressentidos estavam juristas, atores, professores universitários da USP, jornalistas, artistas, enfim, os nomes de sempre; Celso Lafer, Ferreira Gullar, José Arthur Giannotti,  José Álvaro Moisés, Bóris Fausto, Leôncio Martins Rodrigues e Lourdes Sola e outros. Sob a aparência de um senso agudo de civismo, crítica e democracia o que se ler nas breves linhas do "Manifesto" é uma indisfarçável hipocrisia elitista e preconceituosa.

O ressentimento é devido ao fato do governo Lula ter retirado das elites tradicionais deste país a crença e a missão civilizatória que elas piamente se agarram como definidoras de seu caráter e de sua função histórica para o Brasil, a saber: de que elas representam a grande força de esclarecimento e progresso do país. Essa perda irreparável atinge implacavelmente o narcisismo de nossas classes abastadas.

Na cabeça dos temerosos tucanos e liberais, a democracia necessita ser protegida da turba, do aparelhamento, do clientelismo e do carisma de líderes demagógicos. Obviamente, deve ser protegida unicamente por aqueles que de fato e por mérito a compreendem em sua essência e pureza. Daí a onda de denuncismo atual. Para os “descontentes” liberais, o PT contaminou a democracia com um sujeito que até então, no Brasil, só existia nos cálculos do poder; o povo.

Mas o que querem esses “descontentes”? Por acaso, o governo suprimiu arbitrariamente alguma liberdade essencial? As relações entre o governo, o PT e o empresariado são marcadas por animosidades, antagonismo e interferência direta e unilateral? A imagem internacional do Brasil é de um país autoritário? Não.

O que as elites “descontentes” querem é que o povo volte a ser apenas um número, ou seja, algo que elas sabem que existe mas que é desprovido de corpo e voz. O povo mais não deve ser do que um nome e um registro eleitoral ou uma massa informe desprovida de idéias e habilidades cognitivas. O povo só interessa às elites como objeto de poder; objeto de filantropia e caridade, objeto de projeto social, objeto de políticas de segurança etc.. No governo Lula, o povo deixou de ser uma abstração. É isso que incomoda e aflige. Uma democracia sem demos é o que eles defendem.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Nada especial ou quando não se tem nada a escrever



Algumas vezes não temos nada sobre o que falar ou escrever. Embora saibamos que há tanto à nossa volta; um mundo inteiro nos espera à apenas um modesto click do controle remoto ou do mouse de nosso computador. Certamente, um dos problemas parece residir no fato de não sabermos, com segurança e alguma convicção, por onde começar nem quanto tempo permanecer. A cada assunto ou tema a que nos detemos com alguma seriedade não lho concedemos mais do que alguns instantes, pois a amplitude e o leque de possibilidades que estaríamos a deixar de lado suscitam imediatamente em cada qual um sentimento de desperdício sufocante.

Quando nada temos sobre o que escrever isto não significa desmotivação ou falta de reflexão ou um espaço neuronal ocioso. Pois, em blogs, como se é tentado a dizer alguma coisa sobre quase tudo, assim como no dia-a-dia, é mais comum escrever e opinar desde nossa própria ignorância do que segundo nosso real saber. O famoso e eloqüente aforismo de Wittgenstein segundo o qual “sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar” não se aplica a esta janela aberta ao mundo, a este curioso canteiro de observações mais ou menos críticas, mais ou menos sociológicas, mais ou menos filosóficas, que são alguns blogs.

No momento, pergunto-me que autores, se vivos hoje, teriam um blog. Certamente, Walter Benjamin e Michel Foucault seriam alguns deles. O primeiro, como teórico dos novos meios da moderna cultura de massa e dedicado ao estudo do impacto destes na geração de novas formas de percepção coletiva, e além do seu estilo de expressão peculiar, fragmentário, sem dúvida alguma teria nos blog’s e em todas as redes sociais um campo de estudo e de expressão. O segundo, como é sabido por todos, foi um intelectual entusiasta e constantemente interessado por entrevistas e debates na televisão, artigos em periódicos não-especializados. Nem Benjamin nem Foucault eram filósofos da universidade. Viviam por suas idéias e escritos. Que autores mais pensa o leitor dedicar-se-iam a este ofício um tanto vulgar para os espíritos mais elevados que é escrever em blog’s?

Retornemos ao tema inicial. De fato, há muita sabedoria em calar-se, em preservar o silêncio, porém, é árduo fazê-lo. Como, pois, livrar-se das palavras se mesmo quando elas não escorregam de nossos lábios ainda aí não estamos em absoluto silêncio? Falamos, escutamos “nossas” palavras a todo o momento; quando lemos, quando sonhamos, quando estamos acordados, pensando ou parados. Os sons e as imagens de nossas palavras enroscam-se como serpentes sedentas em nosso cérebro, e daí não desgrudam. É que mesmo dentro de nós o mundo vibra por mais que desejemos correr com as cortinas, fechar olhos e não pensar; decidir não pensar. Descansar de nós mesmos é uma dádiva que deus algum nos legou. Só os remédios e o suicídio são capazes de tal.

Falamos não porque sabemos coisas importantes as quais temos que necessariamente comunicar e exprimir. Na maior parte das vezes e com exceção de alguns foros especiais, falamos por falar, não por causa do sentido e do valor dos argumentos a serem emitidos mas simplesmente porque ao falar o homem é, com efeito, este ser singular e banal que ele é; faz-se visível a si mesmo e aos outros, assegura-se de sua existência quando fala e percebe o efeito de sua fala sobre os outros e vice-versa. Perturbar a serenidade do silêncio é a maneira pela qual dirigimos e somos dirigidos até a vida; o barulho é o nosso enlace com o mundo e conosco. Uma vez no mundo, impossível permanecer em silêncio.



terça-feira, 21 de setembro de 2010

Experimento em Ciência Política: Confiram!




Bem pessoal, peço à todos aqueles que tiverem um tempo disponível que visitem o http://www.meuvoto2010.org/. Alguns jovens cientistas políticos tem tentado comprovar algumas teorias e nós podemos auxiliar nas pesquisas. Enfim, é isso, segue explicação elaborada por Clayton Mendonça Filho, Douturando do IUPERJ e que vem desenvolvendo pesquisas na área.


O MeuVoto2010.org é uma aplicação que permite a prospectivos eleitores comparar como suas preferências políticas se sobrepõem às posições políticas dos candidatos. Já houve vários experimentos com essas ferramentas, algumas vezes referidas como VAAs (Aplicações de Aconselhamento de Votação), por toda a Europa e Estados Unidos. No experimento brasileiro, já tivemos mais de 25000 acessos em poucas semanas, tornando-o o mais bem sucedido VAA.

O mecanismo é simples: antes de uma eleição, os principais candidatos são classificados de acordo com suas posições políticas. Isso pode ser feito por partidos ou por seus representantes, pelos candidatos ou um grupo de pesquisadores acadêmicos. Então, usuários da ferramenta preenchem o mesmo questionário e expressam suas preferências. O sistema, portanto, compara as respostas dos partidos/candidatos com aquelas fornecidas pelos usuários. O resultado final é um ranking de partidos ou candidatos baseado no grau de coerência entre partidos/candidatos e o usuário (para mais detalhes técnicos veja como os resultados são calculados). Cerca de 20% dos usuários até o momento têm se declarado indecisos, de modo que o sítio pode servir como uma ferramenta para ajudar a decidir o voto.

Os dados coletados dos usuários permitirão gerar um banco de dados sobre informações sócio-demográficas e políticas que estará disponível a pesquisadores interessados. Na última versão da ferramenta, incluímos uma opção para o usuário estimar qual, em sua opinião, será o resultado real após a eleição. Esta ferramenta permitirá testar empiricamente teorias de Crowd Sourcing, ou seja, que muitas pessoas juntas, a partir de certo número, são capazes de fazer previsões acerca de resultados que sejam estatisticamente relevantes tecnicamente eficientes..

O projeto não é afiliado a nenhum movimento ou partido político. O questionário foi projetado por pesquisadores em universidades brasileiras e estrangeiras . Os candidatos políticos não influenciaram na concepção do projeto e todas as informações foram coletadas por peritos independentes. O projeto é uma iniciativa conjunta entre o site Congresso Aberto, através do professor Cesar Zucco da Universidade de Princeton e o e-Democracy Centre da Universidade de Zurique, através do professor Fernando Mendez, em conjunto com os colaboradores externos Clayton Cunha Filho, do IESP-UERJ e Tiago Peixoto, do Instituto Universitário Europeu (EUI) em Florença.

Os resultados mostram o seu grau de concordância com os candidatos em questões globais sobre política. O coeficiente de concordância varia de -100 (total discordância) a +100 (total concordância). Um coeficiente negativo (de -1 a -100) significa que o grau de discordância com o candidato é maior do que o grau de concordância em relação à totalidade das questões. Um coeficiente positivo (de 1 a 100) indica concordância. Entretanto, um coeficiente positivo entre 1 e 40 pontos não deve ser considerado como um grau significativo de concordância.

Além disso, a ferramenta está disponível gratuitamente para terceiros e pode ser facilmente incorporada a outros sites (veja, por exemplo: http://questaopublica.org.br/). Para incorporar o MeuVoto a seu site, copie o código abaixo e cole no seu site. Caso tenha dificuldades, entrar em contato com Fernando Mendez (fernando.mendez@zda.uzh.ch).

Acesse e conheça: http://www.meuvoto2010.org/

Post pescado no Carta Potiguar.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Pergunta simples:

Por que nos confessamos a Deus, quando se afirma que ele sabe tudo sobre nós - onisciência?

O que pensa o leitor acerca dessa contradição lógica, abordada desde Santo Agostinho?

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

A Queima do Alcorão e o Direito à Profanação


Nas últimas semanas, uma pequena igreja da Florida, nos Estados Unidos, tem atraído alguma atenção do mundo. Como o leitor atento já inferiu, trata-se da campanha, organizada pelo pastor Terry Jones, de promover o Dia Internacional da queima do Alcorão. Muitas vozes, em protesto e condenação, se levantaram contra a esse gesto de tola extravagância e desejoso de atenção e visibilidade. Apesar da aparente rejeição dos norte-americanos, esse tipo sinistro de campanha e provocação infantil exprime algo que todos já sabem, mas que não custa lembrar e reforçar; o fundamentalismo é uma matéria que os EUA conhece e pratica muito bem, sobretudo, no que se refere à religião, embora se estenda também à política desse país.

Porém, a principal questão que se desenha aí não é simplesmente atestar e exemplificar o fundamentalismo protestante que caracteriza os EUA. Também não é, a meu ver, rejeitar ou apoiar tal ato; qualquer um com o mínimo de bom senso reprova a infantilidade e estupidez desse pastor em, gratuitamente, acirrar os ânimos e alimentar ódio sobre um conflito bastante sério e que vá além de uma guerrinha de isqueiro, papel, bandeiras, bíblias e Corão.

A questão interessante a pensar, me parece, consiste em saber se se deve ou não proibir a queima do Corão. Evidentemente, muitos se sentirão ofendidos e insultados, e os motivos e as razões dos piromaníacos protestantes não são lá convincentes nem razoáveis, todavia, ainda que ética e politicamente condenável e estúpido do ponto de vista racional, penso que não há que proibir a queima do Corão. Em que se fundamenta tal disparate, perguntaria o leitor? Não, não é meramente por causa da liberdade de expressão, essa premissa sagrada de nossas sociedades liberais.

Sustento um direito à profanação. De um ponto de vista, digamos, político-filosófico, a profanação é fundamental, porque por meio dela restituímos ao uso, ao arbítrio e à racionalidade dos homens o que antes, por engodo e arbitrariedade, pôs-se em separado, numa esfera divina e transcendente. A religião e o sagrado são, de uma maneira geral, prescritivas e restritivas no sentido em que afirmam que há coisas, temas e motivos que não cabem aos homens conhecer, discutir, nem intervir na medida em que referem-se a uma outra esfera, aparte da “esfera dos negócios humanos”, para utilizar a expressão de Hannah Arendt. Graças a essa separação, criam-se os “monopólios dos bens de salvação”, as hierarquias entre os mediam a relação com o sagrado e aqueles que não tem acesso direto a ele, inventam-se mitos pelos quais se mata e se morre.

Portanto, a tola extravagância do pastor norte-americano em propor a queima do Corão, ainda que ele não saiba disso e o faça, ironicamente, em nome do sagrado, devolve à esfera humana o que antes estava sob a tirania de um erro, de um engano, de sorte que o alça à discussão, à desmitificação. Pois as folhas queimadas não trarão pestes e pragas vindas dos céus, lançada sobre a terra por Deus poderoso e mal-humorado, mas sim, talvez, aviões pilotados por homens enfurecidos e embrutecidos por fábulas.

O ato de queimar o Corão questiona este tão enraizado sentimento de que há coisas as quais não se pode tocar, que existem coisas sagradas diante das quais se deve tirar os sapatos, curvar-se e tolher as mãos para não contaminá-las com nossa imperfeição e sujeira. A profanação não visa ridicularizar o sagrado ou, como intenta o ignorante pregador, ofendê-lo. Profanar significa retirar as auréolas e o véu da ilusão para submeter, ou melhor, restituir o que se quer e se pensa como eterno, puro e perfeito à falibilidade e à precariedade que selam tudo quanto existe na esfera dos mortais.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Quanto custa rechear seu Currículo Lattes?



Abaixo o interessante e importante texto/relato retirado do sitio digestivo cultural, escrito por Marcelo Spalding a propósíto de uma situação que maior parte do meio acadêmico já está careca de saber e critica, mas que pouco tem feito para combater, a saber: os métodos de avaliação dos pesquisadores e o produtivismo que assola as universidades. As conseqüencias da corrida para o melhor Lattes - leia-se, maior - tem produzido diversos efeitos perversos à Ciência; pode-se dizer, inclusive, que já não é tanto a descoberta, a inventividade e o risco de conceber coisas novas que movem a produção científica, mas o impulso estúpido e irrefletido de redigir artigos com a mesma criatividade de quem copia uma receita de bolo para públicá-los, o mais rápido possível, nos periódicos mais atrativos para a pontuação. Enfim, deixemos a palavra com o Marcelo Spalding:


Quanto custo rechear seu currículo Lattes?

Essa não é uma coluna sobre cultura, é sobre educação. Mas o que tem mais a ver com a cultura do que a educação?

Todo estudante universitário já ouviu falar do Currículo Lattes, todo aspirante a Mestre ou Doutor decerto já fez o seu e àqueles com pretensões acadêmicas é imprescindível atualizar seu Lattes pelo menos duas vezes por ano. O Lattes é critério quase universal para seleções de programas de pós-graduação do Brasil e do exterior, além de ser fundamental nas bancas de contratação de professores universitários em concursos e editais. Mantido pelo CNPq, é uma forma democrática de centralizar as informações acadêmicas de todo país, permitindo aos pesquisadores encontrar colegas de áreas afins e, a quem seleciona, avaliar a produção científica do aspirante à vaga.

Os críticos dizem que o Lattes transforma todo o esforço intelectual dos pesquisadores em quantidade, em números, simplificando e até ridicularizando uma produção eminentemente qualitativa. Ocorre que no final do Lattes há uma tabela informando quantos artigos foram publicados, quantos livros ou capítulos de livros, de quantos congressos o fulano participou. Mas até aí nenhuma novidade, se você começou a ler este texto provavelmente já sabe o que é e como funciona o Currículo Lattes. A novidade é que um bom Lattes tem preço.

Com o crescimento dos cursos de pós-graduação no Brasil e o amadurecimento da Plataforma Lattes, a corrida por "qualificação" tem sido grande, e a lógica quantitativa acaba incentivando a formação de um verdadeiro "mercado acadêmico". Já havia percebido isso ao me inscrever em um congresso, no meu caso o da ABRAPLIP, mas poderia ser de qualquer área e em qualquer lugar. Se você quer que seu trabalho seja apresentado, antes da inscrição deve enviar um resumo e aguardar o aceite. Elaborei o resumo, nas normas que exigiam, e o submeti. Em poucas semanas, um e-mail informa que o trabalho foi aprovado, e o ingênuo aqui fica feliz da vida: vai no site, preenche a ficha de inscrição, imprime o boleto, paga no banco a taxa de cento e poucos reais (há eventos de R$ 300,00, R$ 500,00, e por aí afora, especialmente se você for da área de Medicina ou Direito). No dia da minha apresentação no evento, a surpresa: havia cinco pessoas na sala: um professor e quatro apresentando trabalhos. Público para quê? Discussão para quê? Afinal, dali sairemos com um certificado (enviado por e-mail), um CD-ROM e um número a mais no Lattes!

Evidentemente, a proporção não é um por um, mas tão evidente quanto é que os congressos hoje estão inchados com dezenas de apresentações de trabalhos, e o aceite desses é uma mera formalidade. Um trabalho medíocre será aprovado se não comprometer o evento e o autor lá estará, enquanto um aluno excelente que faça um artigo excelente mas por algum motivo não possa pagar a inscrição, ah, esse não estará lá. Afinal, sai caro um bom Lattes...

Mas vamos além, afinal de contas, poucos dos que se aventuram em cursos de pós-graduação não teriam dinheiro para a inscrição de um evento desses. E a passagem? E o hotel? E férias, para quem não tem bolsa? Sim, porque se você tiver pretensão de dar aula na USP, na UFRJ ou na UFRGS, é bom sua vida acadêmica não ficar restrita a Cacimbinhas, é bom você ter ido aos eventos nacionais mais importantes da sua área, ter contatos, viajar. E não espere algum desconto especial para viagens acadêmicas por parte das companhias aéreas. Muito menos bolsas oferecidas pelos cursos de pós-graduação, a não ser em raríssimos ― e discutíveis ― casos. Afinal, sai caro um bom Lattes...

Infelizmente, não é só isso. Estávamos tão acostumados a participar de congressos e pagar por isso, estamos tão satisfeitos em aproveitar esses eventos para fazer turismo pelo Brasil (ah, claro, ninguém acha que o controle de presença nesses eventos seja muito rigoroso, né?) que nem percebemos o quão injusta é essa lógica do "pagando bem, que mal tem". Quero ir além. De uns tempos para cá, tem se tornado comum no Brasil pagar pela publicação de artigos! Sim, os artigos científicos, tão puros, tão imparciais, tão citados como referência do conhecimento pela mídia, pelos nossos professores, publicá-los também tem um preço, e bem salgado.

Ainda não havia me acontecido isso, mas uma amiga da área da Enfermagem ousou submeter seu artigo de conclusão de curso para a Revista Gaúcha de Enfermagem e, adivinhem, o artigo foi aceito para a publicação com uma condição: ela e as outras duas autoras do artigo deveriam ser assinantes da revista para essa publicação, e, claro, isso tem um custo: R$ 130,00. Cento e trinta! Fiquei pensando se já aconteceu de alguém enviar artigo e ele não ser aceito, afinal cenzinho é cenzinho...

Pensei em reclamar para a UFRGS que uma revista com seu logotipo fizesse esse tipo de coisa, mas a Universidade está em férias. Entrei em contato, então, com a Ouvidoria do Ministério da Ciência e Tecnologia, a fim de denunciar esse tipo de abuso num país e numa universidade que lutam pela inclusão acadêmica de negros e pobres. A resposta, conclusiva, me fez perceber que o Lattes realmente tem preço:

Prezado Marcelo,


A cobrança para publicação de artigos é prática frequente na área internacional, inclusive porque alguns periódicos científicos são bancados pelos próprios autores. A informação, pelos custos que envolve, resulta cara. No Brasil, esta prática ainda não está amplamente disseminada mas já é praticada, principalmente na área médica.
No caso específico, segundo sua informação, o pagamento não é propriamente pelo artigo, mas para que ela se torne sócia da revista. Sugerimos que consulte a política editorial do periódico, que deve estar impressa na própria revista ou no seu site. A política editorial informa quais são os critérios utilizados para seleção e publicação de artigos.

Nada obstante, caso ela não concorde com o critério, pode submeter seu artigo a outros periódicos que não exijam contrapartida financeira. Seguramente na sua área de especialização existem vários em todo o Brasil.


Atenciosamente, Ouvidoria-Geral do MCT

Indignado, entrei em contato com minha orientadora de graduação, uma professora muito amiga, Doutora em Comunicação. E aí a professora me lembrou de que quando terminou seu Doutorado, recebeu pelo menos cinco cartas a parabenizando e a convidando a publicar seu belíssimo trabalho em livro. Mas, é claro, um livro acadêmico é sempre importante e, afinal, sai caro um bom Lattes. Caro quanto? Cinco mil reais.

Não posso concordar com essa lógica, e me surpreende que entidades como a UNE fiquem mais preocupadas com o preço da passagem de ônibus do que com esse tipo de descalabro. Não é novidade alguma que a seleção para os cursos de pós-graduação passam por critérios pessoais, políticos, nada objetivos, e no momento que se cria uma ferramenta para tornar a escolha um pouco mais democrática, admitiremos que essa ferramenta sirva para privilegiar os estudantes com mais poder aquisitivo? Sem demagogia, dessa forma algum pobre que entrou na universidade pelas cotas ou pelo Pró-Uni conseguirá ingressar em Mestrados e Doutorados a partir desse critério mercantilista?

Para mim, o caso é muito grave. São essas pessoas com Lattes recheados que irão lecionar nas universidades federais e particulares (e há aos borbotões), são elas que irão formar os futuros médicos, advogados, jornalistas, professores? E quais os valores que essa geração acadêmica tem a passar? O valor do "quanto mais, melhor", do "quem pode mais, chora menos"? E essa realidade, todos sabem, se reflete desde o Ensino Fundamental, onde as creches e escolas públicas são cada vez mais abandonadas e as particulares proliferam e profissionalizam-se. Mas aí já é assunto para outra crônica...

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

O que houve com o notável "universalismo" francês?


Pois vejam só, a França Iluminista, tão orgulhosa de seu universalismo, não cessa de revelar a crueza provinciana e eurocêntrica de suas pressuposições políticas e identitárias. Em tempos de crise, a história do século XX já nos ensinou, os homens perigosos e apaixonados pelo poder adoram desviar a atenção dos verdadeiros problemas e das reais responsabilidades, de maneira a obter ganho político através da polemização em cima de grupos estigmatizados, alvos fragéis nos quais possam direcionar seu ódio e ressentimento. Assim acontece, hoje, com os ciganos na França. Antes foram com os mulçumanos, a polêmica em torno da burca, os imigrantes africanos, arábes, os naturalizados, os habitantes das periférias etc.

No entanto, a lógica do cálculo aqui não é apenas o caráter étnico. O que mais búlgaros, romenos, albaneses, senegaleses e marroquinos tem em comum? Todos são imigrantes, ou descendentes, pobres, habitantes de bairros pobres e estigmatizados como "menos" franceses. 

O cerco fascista avança em vedar aos imigrantes e estrangeiros pobres qualquer tipo de auxílio que favoreça e facilite sua permanência nas terras de Voltaire. Aqueles que, não nascido em França, atentarem contra à Ordem e à Segurança nacional poderão perder sua nacionalidade, bem como, os filhos de pais estrageiros, nascidos em solo francês, uma vez condenados à prisão, não poderão obter a nacionalidade francesa. Assim, criam-se nacionalidades que valem mais do que outras; uns mais "puras" e intocáveis e outras "emprestadas", postiças, descartáveis.

O charmoso universalismo francês caminha à passos largos para a odiosa e preocupante limpeza étnica e social. Que, pensaria, pois, da França atual os enciclopedistas do século XVIII?

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

As tiranias das micro-utopias



Sobre nossa época, a rigor, costuma-se caracterizá-la como um tempo desprovido de utopias; pelo menos aquelas grandiosas que ao colocarem o bem no futuro justificavam ao mesmo tempo o mal do presente e o tortuoso caminho até a redenção. Esses dias de fé na história, na capacidade técnica, política e racional dos homens de forjarem seu próprio destino até o paraíso, afirmam estudiosos e artistas, perdeu o seu impulso. O sopro messiânico que nos acalentava bruscamente cessou. Nem Deus, nem Proletariado, nem Homem. Todos esses conceitos que convertemos em agentes universais, os quais eram responsáveis pelo otimismo acerca de nossas iniciativas, afundaram vagarosamente sob nossos olhos e mãos. Com isso, restaram os frêmitos da agonia das inumeráveis mortes – da filosofia, da política, da arte, da história, do sujeito etc. – cuja duração ou estado de coma é algo extraordinário e digno de estudo. O que escapou dessa funesta chacina, como o capitalismo e o meio ambiente, exclamam demasiado alto alguns, já tem a sua data fatal agendada.

O resultado do fim das utopias seria uma época gravada pelo signo da ruína, na qual as sombras daqueles agentes universais e os restos dos valores e conceitos anteriores nos acenam, com ironia e maldade, para lembrar-nos de nossa impotência contemporânea. A outrora meia-dúzia de grandes narrativas providencialistas, que alimentavam o coração e o espírito dos homens, não desapareceram simplesmente. Na verdade, assim me parece, elas transmutaram-se em uma centena de esmigalhadas utopias; micro-utopias que, contudo, mais do que consolar, atormentam as “consciências infelizes” da contemporaneidade.

Dessa forma, o tempo das utopias ainda perdura, apesar do aspecto maléfico segundo o qual elas agora se manifestam. Assim, vivemos como podemos no entulhar inconcluso de restos e ruínas que nos rodeiam. Nossas micro-utopias em busca do corpo esbelto e perfeito, do emprego dos sonhos, do prêmio da mega-sena, da autorrealização, enfim, revelam-se, tragicamente, como aquilo que ameaça reduzir também a nós mesmos em ruínas se, por acaso, fracassarmos.

Nossas micro-utopias que nos impulsionam a atravessar o imenso mar da vida são também nossas micro-tiranias, as quais se conservam, sem descanso, em nossas costas como um vigia dos forçados de chicote em punho. Desde já, a pergunta que pode trazer algum fôlego de vida, consiste em constatar se uma sociedade descrente em sua capacidade de gerar utopias, de fascinar-se coletivamente com o impossível, com ideais a que buscar e investir o esforço diário de respirar com algum sentido para além da bruta conservação, não é ela mesma uma sociedade arruinada, que vegeta a espera de seu lá o que? E, que, portanto, necessita de alguma forma retirar, ou melhor, criar de suas próprias ruínas o elemento vivo que a permita novamente começar em direção a um mundo que ainda não é, mas que pode vir-a-ser.