No texto passado, vimos que Nietzsche lança mão de duas suposições para compreender genealogicamente o sentimento de culpa. Primeiro, como sintoma da relação credor-devedor, segundo, como sintoma da relação entre os vivos e os antepassados. Se na primeira hipótese é arbitrária a associação lógica entre inadimplência e culpa, - já que não necessariamente “dívida” implica sentir-se culpado - a segunda, a meu ver, goza de uma maior consistência e propriedade, pois a culpa não surge, como num passe de mágica, de uma relação direta de não-pagamento, mas ela é produzida lentamente, introjetada aos poucos no mundo e na cabeça dos vivos em sua relação com os antepassados até que estes adquiram feições de divindade.
O declínio da forma de organização da “comunidade” baseada nos vínculos de sangue não significou a extinção do sentimento de culpa ou seu congelamento. O surgimento dos monoteísmos intensificou-no. Iaveh, de um deus festejado, cujo culto centrava-se em homenagens converte-se num deus temido, vingativo, de ira implacável para com as faltas dos seus. No entanto, o golpe de mestre que levou o sentimento de culpa ao seu ponto culminante ainda estava por vir. É com o advento do cristianismo que o temor ante a punição e o temor de não corresponder acenderão nas almas dos homens a forma mais substancial, a forma máxima do sentimento de culpa.
O golpe de mestre do cristianismo consistiu, segundo Nietzsche, no seguinte estratagema: Deus, o credor máximo, se sacrifica pelos homens pecadores – ou seja, os devedores. Desse modo, a dívida que na relação de direito privado poderia ser paga, negociada ou extinta e que em relação aos antepassados era possível de ser honrada com feitos, conquistas, expansão, etc., com o sacrifício de Deus, a crucificação, seu pagamento transforma-se em algo impossível. Não há como ressarcir o Credor divino, pois Deus entregou sua vida pela possibilidade de remissão dos devedores, ou seja, apesar da dívida. O credor pagou a dívida! Não há mais possibilidade de troca – homenagem, festa, sacrifícios, feitos, conquistas... Cristo significa simultaneamente o aniquilamento da troca simbólica entre homens e deuses e um apelo à culpa.
Assim, o sofrimento do homem com ele mesmo, isto é, em termos nietzschenianos, a “má consciência”, é a matéria de cujo relevo o cristianismo extrai sua forma e força, no sentido de fazer do sofrimento responsabilidade dos homens, já que Deus pagou, e com preço de sangue, a dívida destes. A culpa é introduzida como manejamento da má consciência a partir do sacrifício do Deus-credor pelos pecadores-devedores humanos. Cristo converte-se num Deus universal, e a dívida para além da submissão, isto é, para além da culpa, tornar-se impagável. A salvação só é possível mediante a culpa, ou melhor, esta é condição sine qua non para a primeira.
A má consciência ergue-se em sentimento de culpa ao responsabilizar todos os homens, desde o nascimento, por sua dor e aflição; porquanto estes são, antes mesmo de tomarem consciência de si e do mundo, pecadores, devedores de uma dívida paga mas impossível de ser resgatada, o sacrifício de Cristo.
Se nos homens antigos, nas castas guerreiras, a má consciência era fonte de tensão entre forças antagônicas, no cristianismo, ela instala-se com um automartírio; uma agressão interna perpetrada contra o homem pelo próprio homem. Os deuses gregos que serviam para aplacar o sofrimento do homem, movê-lo e agitá-lo em busca de feitos e sentidos que imunizem a dor, portanto, a má consciência é experimentada como algo ativo, ela impulso a criar, a enfrentar. Ela é uma natureza inflamável. O uso do Deus cristão, todavia, nada tem de ativo, segundo Nietzsche. De acordo com o filósofo alemão, o cristianismo transforma o sofrimento, a culpa, naquilo mesmo que dá sentido ao mundo e que define a condição do homem.
"Existem maneiras mais nobres de se utilizar a invenção de deuses, que não seja para essa violação e automartírio do homem, na qual os últimos milênios europeus demonstraram sua maestria- isto se pode felizmente concluir, a todo olhar laçado aos deuses gregos, esses reflexos de homens nobres e senhores de si, nos quais o animal no homem se sentia divinizado e não se dilacerava, não se enraivecia consigo mesmo! Por muito e muito tempo, esses gregos se utilizavam de seus deuses precisamente para manter afastada a “má-consciência”, para poder continuar gozando a liberdade da alma: uso contrário, portanto, ao que o cristianismo fez do seu Deus."
O sofrimento consigo mesmo deixa de ser um solo propício para expansão da força, da vivacidade, um espaço impulsionador de liberdades para, com efeito, está em conformidade com tudo aquilo que expresse culpa; submissão, silêncio, humildade, mansidão, retidão, compaixão, confissão. O sentimento de culpa foi durante milênios o mais forte instrumento de dominação do cristianismo. A este devemos as feições mais conhecidas da culpa, por assim dizer: sua características de nos conduzir a um roer a si silencioso, remorso esteril e passivo, cabeça baixa, auto-rebaixamento.
Alyson Thiago F. Freire
* Todas as citações extraídas de:
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
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