quarta-feira, 31 de março de 2010

Vitória do ressentimento.




Uma pequena insatisfação circula pelos círculos semi-ilustrados do país. Apesar do desprezo que muitos dizem sentir pelo programa Big Brother Brasil, a vitória do participante Dourado foi recebida com algum pesar e revolta. Os mais exaltados exclamam desconsolados: “Foi uma vitória do preconceito, do machismo”; “Eis a demonstração nua e crua da ignorância do brasileiro e de sua aversão pela diversidade”. Certamente o leitor em algum momento deve ter ouvido frases desse tipo. O mais engraçado é ouvi-las da boca daqueles que até então ostentavam um desdém aristocrático, e que agora, a julgar por sua revolta e insatisfação, parecem atribuir ao programa uma relevância surpreendente.

Cá do meu canto, não vejo derrota de nada, nem prova de aversão alguma. Vejo apenas ressentimento. A meu ver, a vitória de Dourado, sua popularidade instantânea, se deve ao ressentimento de uma parcela dos heterossexuais em relação à visibilidade política e publicitária que os gays conquistaram nos últimos anos. Uma reação. O patético é constatar que essa reação se encarnou no clichê da masculinidade, isto é, o que esta tem de mais estúpido, pobre e rude: a virilidade tosca e deseducada dos arrotos e das cusparadas, o ar hostil e ameaçador dos murros e pontapés.

O clichê, isto é, a imagem ou a representação simplificada e homogeneizante de algo, serve para fazer com que percebamos somente aquilo que nos interessa. Ou seja, aquilo que se alinha com nossas expectativas e exigências psicológicas, segundo os interesses – reativos - em questão. Não importa a ignorância, a asneira, os preconceitos, a inteligência rala; no clichê somente se ver o que une, o que congrega, o comum, portanto, os elementos homogeneizantes, e não o que complexifica e problematiza.

O êxito do brother Dourado é, na verdade, a reação ressentida de segmentos que, de uns anos pra cá, viram-se confrontados com uma diferença que deixou o armário e o silêncio para a algazarra das ruas, dos filmes e programas de televisão. Uma diferença que foi paulatinamente recoberta com direitos e mecanismos de defesa e proteção pelo Estado, assegurando seu direito à visibilidade e dignidade, e que, também, ganhou um lugar de reconhecimento, cada vez mais expressivo, no mercado e no âmbito da cultura pop e do entretenimento.


Alyson Thiago F. Freire

sexta-feira, 26 de março de 2010

Boinas Verdes com rostos humanos. Artigo de Slavoj Zizek.



Em artigo para o jornal El País, 24-03-2010, o polemista esloveno Slavoj Zizek dirige sua afiada verve contra o filme ganhador do Oscar, "Guerra ao terror". No artigo, Zizek discorre sobre como o filme ao valer-se da "humanização do soldado" projeta uma perspectiva que desvia e encoberta a questão chave - o que exercito americano faz no Iraque? Qual a razão real dessa guerra e ocupação? Quais os interesses político-econômicos em jogo? - em favor de um ângulo de visão que faça ver o exército e o seus integrantes como pessoas comuns, cujo sacrifício e desgastes emocionais, traumas, angústias e riscos inerentes à severidade da tarefa militar são realizados, apesar do desconhecimento geral sobre tais, em favor de nossa tranquilidade, paz e segurança. Confiram abaixo esses e outros ardis da ideologia na sempre prazerosa letra de Zizek.

Eis o texto.

Quando "Guerra ao terror", de Kathryn Bigelow, conquistou os principais Oscars frente a "Avatar" de James Cameron, essa vitória foi percebida como um bom sinal do estado das coisas em Hollywood: uma modesta produção pensada para festivais do tipo Sundance e que, em muitos países, nem sequer havia obtido uma grande distribuição, supera claramente uma superprodução cuja brilhantez técnica não pode dissimular a plana simplicidade de seu roteiro. Então Hollywood não é só uma fábrica de grandes sucessos de bilheteria, mas também sabe apreciar esforços criativos marginais?É possível, embora seria preciso matizar: com todas as suas mistificações, "Avatar" claramente toma partido pelos que se opõem ao complexo industrial-militar mundial, retratando o Exército da superpotência como uma força de destruição brutal ao serviço de grandes interesses industriais, enquanto "Guerra ao terror" apresenta o Exército norte-americano de um modo plenamente de acordo com sua própria imagem pública neste nosso tempo de intervenções humanitárias e de pacifismo militarista.

O filme ignora quase por completo o grande debate sobre a intervenção dos Estados Unidos no Iraque e, em lugar disso, centra-se nas terríveis experiências diárias, de serviço e fora dele, de soldados comuns obrigados a conviver com o perigo e a destruição. Com um estilo pseudo-documental, conta a história – ou melhor, uma série de pequenas histórias – de um esquadrão antibombas, de seu trabalho potencialmente mortal na desativação de explosivos.Essa opção é sumamente sintomática: apesar de serem soldados, eles não matam, mas arriscam diariamente suas vidas desmantelando bombas terroristas destinadas a matar civis. Pode haver algo que simpatize mais os nossos olhos progressistas? Na Guerra contra o Terror em curso, nossos exércitos não estão, inclusive quando bombardeiam e destroem, e não só essas unidades antibombas, desativando pacientemente as redes terroristas com o fim de tornar mais seguras as vidas de civis em todos os lugares? Mas há mais no filme.

"Guerra ao terror" incorpora a Hollywood uma moda que também contribuiu para o êxito de dois filmes israelenses recentes sobre a guerra do Líbano de 1982, o documentário animado de Ari Folman, "Valsa com Bashir", e "Líbano", de Samuel Maoz."Líbano" versa sobre as próprias recordações de Maoz como jovem soldado, mostrando o medo da guerra e a claustrofobia mediante a filmagem da maior parte da ação a partir do interior de um tanque. O filme nos apresenta quatro soldados inexperientes dentro de um tanque, enviados a "limpar" uma cidade libanesa que já foi bombardeada pela força aérea israelense.

Entrevistado no Festival de Veneza de 2009, Yoav Donat, o ator que interpreta o diretor quando este era soldado um quarto de século antes, disse: "Não é um filme que lhe faz pensar 'só estou em um filme'. É um filme que faz com que você sinta que esteve na guerra". De uma forma parecida, "Valsa com Bashir" mostra os horrores do conflito de 1982 a partir do ponto de vista de soldados israelenses.Maoz disse que seu filme não era uma condenação às políticas de Israel, mas sim uma versão pessoal da experiência pela qual ele havia passado: "Cometi o erro de chamar o filme de 'Líbano', já que a guerra do Líbano não é diferente em sua essência que qualquer outra guerra, e pensei que qualquer tentativa de politizá-la estragaria o filme".Isso é ideologia em seu estado mais puro: o fato de reviver a traumática experiência do perpetrador nos capacita para apagar o pano de fundo ético-político do conflito: o que o Exército israelense estava fazendo no interior do Líbano etc. Tal humanização serve, assim, para jogar uma cortina de fumaça sobre a questão fundamental: a necessidade de uma análise política implacável do que está em jogo como consequência da nossa atividade político-militar.

Nossas lutas político-militares não são precisamente uma história opaca que desbarata bruscamente nossa vida íntima, são algo em que participamos plenamente.De um modo mais geral, essa humanização do soldado (na direção da proverbial crença "errar é humano") é um elemento chave da (auto) apresentação das forças armadas israelenses: os meios de comunicação israelenses gostam de reforçar as imperfeições e os traumas psíquicos dos soldados israelenses, não os apresentando nem como máquinas militares perfeitas, nem como heróis sobre-humanos, mas sim coo pessoas comuns que, agarradas pelos traumas da História e da guerra, comete erros e pode se perder, como todo mundo.Por exemplo, em janeiro de 2003, quando as forças armadas israelenses demoliram a casa da família de um suposto "terrorista", fizeram isso com acusada amabilidade, inclusive até o ponto de ajudar a família a transportar os móveis para fora antes de destruir a casa com uma retroescavadeira.

Na imprensa israelense, informou-se pouco tempo antes sobre um episódio semelhante: quando um soldado israelense estava inspecionando uma casa palestina em busca de suspeitos, a mãe da família chamou sua filha pelo seu nome a fim de tranquilizá-la, e o soldado, surpreso, soube então que o nome da aterrorizada menina era o mesmo da sua própria filha: em um arrebatamento sentimental, tirou sua carteira e mostrou sua foto à mãe palestina.É fácil perceber a falsidade desse gesto de empatia: a ideia de que, apesar das diferenças políticas, todos somos seres humanos com os mesmos amores e preocupações, neutraliza o impacto daquilo que o soldado está efetivamente fazendo nesse momento.

Assim, a única resposta apropriada da mãe deveria ser: "Se realmente você é tão humano como eu, por que está fazendo o que está fazendo agora?". O soldado então só pode se amparar em um dever objetivado: "Não gosto de fazer isso, mas 'é' meu dever..." – evitando assim assumir esse dever de forma subjetiva.A mensagem dessa humanização é pôr de manifesto a brecha entre a complexa realidade da pessoa e o papel que esta tem que desempenhar contra sua verdadeira natureza. "Em minha família, a genética não é militar", como diz um dos soldados entrevistados em "Tsahal", de Claude Lanzmann, surpreso por se ver como oficial de carreira. E isso nos faz voltar a "Guerra ao terror": sua descrição do horror diário e do traumático impacto do serviço em uma zona de guerra parece situá-la a milhas de distância das sentimentais celebrações do papel humanitário do Exército norte-americano, como o infame "Os boinas verdes", de John Wayne.

No entanto, sempre deveríamos ter presente que as áridas e realistas imagens do absurdo da guerra de "Guerra ao terror" turvam, tornando-o assim aceitável, o fato de que seus heróis estão fazendo exatamente o mesmo trabalho que os heróis de "Os boinas verdes". Em sua própria invisibilidade, a ideologia está ali, mais do que nunca: estamos ali, com nossos rapazes, identificando-nos com seus medos e suas angústias, em vez de nos perguntarmos o que ele estão fazendo ali.

Tradução de Moisés Sbardelotto.

quinta-feira, 25 de março de 2010

''A sociedade brasileira, hoje, é grão-burguesa''. Entrevista com Luiz Werneck Vianna



Na entrevista a seguir, Luiz Werneck Vianna, um dos grandes nomes da sociologia política brasileira, defende que o capitalismo nacional passa por uma reestruturação relevante. Segundo o sociólogo, o que hoje unifica o país é "um projeto expansionista burguês com vocação grã-burguesa" em nome do qual a política, em certo sentido, é a grande sacrificada. Para entender esta e outras afirmações, leia abaixo a entrevista, de fortes posicionamentos, do sociólogo brasileiro.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - O capitalismo brasileiro está passando por uma reorganização? Quais são as principais características desse processo?

Luiz Werneck Vianna – Penso que passa, sim, por uma reestruturação relevante, que já vinha acontecendo, mas que assumiu outro ritmo. Diria que isso traduz uma política no sentido de aprofundar o processo de concentração e de centralização de capitais no país. Estão aí as fusões da Oi, do Unibanco com o Itaú e outras importantes que se referem ao setor industrial. Trata-se de uma passagem para uma dimensão superior do capitalismo.

O capitalismo no Brasil consiste, hoje, em um empreendimento extraordinariamente bem sucedido, e o governo Lula tem tido muita responsabilidade e iniciativa na realização desse projeto. Diria que, além disso, a sociedade brasileira, hoje, não é apenas uma sociedade burguesa, é uma sociedade grão-burguesa, como atesta a expansão das empresas brasileiras no exterior, não só na América Latina como na África.

Transcendência

O capitalismo brasileiro transcende as suas fronteiras nacionais. A sua política externa, hoje, está a serviço disso. Ela não apenas atua na defesa do território, da identidade nacional, mas diria que, sobretudo, está presente na expansão econômica do país. Isso se manifesta através de diferentes empreendimentos. Do ponto de vista cultural e universitário, essa universidade que acaba de ser criada no Mercosul é mais um indicador dessa presença ampliada da política brasileira em relação ao seu mundo exterior. Essa política traduz o fato capital de que o capitalismo brasileiro tende a se projetar para fora dos seus limites nacionais, assumindo uma vocação internacional. Denomino essa política de grão-burguesa, que está sendo referendada e apoiada por políticas de Estado. Nesse caso, as estatais têm desempenhado um papel muito importante, alavancando essa política de concentração e centralização de capitais e de lançamento do capitalismo brasileiro no mundo.

IHU On-Line - Além das estatais, qual é o papel dos fundos de pensão nesse processo? São eles os “pilares” dessa reestruturação?

Luiz Werneck Vianna – Também. Na verdade, dessa pergunta podemos deduzir a resposta. Se pensarmos na questão dos fundos, é complicado, porque eles atestam que esse movimento não se limita às elites econômicas da indústria, do agronegócio e está envolvendo também, no mínimo, a vida sindical. Basta olhar para a composição desse governo, onde todas as classes e frações de classes se encontram representadas. O agronegócio é um personagem-chave desse Estado brasileiro de hoje, assim como o mundo das finanças, dos serviços, da indústria. Os sindicatos também estão presentes, principalmente as centrais sindicais. Para que não fique só nisso, movimentos sociais que dizem respeito às questões raciais e de gênero também se encontram instalados no interior desse Estado. Na verdade, isso reedita, em um plano mais largo, mais fundo, em outras circunstâncias, o que foi o Estado Novo da época Vargas. Escrevi, há um ano, um pequeno ensaio, dedicado a esse assunto, em que tentava demonstrar que o funcionamento dessa máquina estatal compósita e heteróclita só vinha funcionando a contento em razão da presença do seu grande articulador, que é o Presidente da República. Sem ele, será muito difícil preservar a harmonização de contrários que hoje caracteriza o governo.

IHU On-Line - Assiste-se a uma reconfiguração de classes ou frações de classe a partir desse fenômeno? Se sim, que classes surgem?

Luiz Werneck Vianna – Ainda percebo as velhas classes brasileiras em processo de diferenciação. A representação associativa e sindical delas é muito poderosa, incluindo o MST, mas, infelizmente, suas ações não têm atuado no sentido de uma vitalização do tecido político, muito afetado pela sucessão de escândalos que o tem fragilizado. A intervenção da vida associativa e sindical, ao invés de procurar o espaço da sociedade civil, tem dado preferência a agir no interior do governo.

IHU On-Line – Essa reorganização do capitalismo pode desestabilizar as forças políticas do país?

Luiz Werneck Vianna – Desestabilizar, não, mas elas já tiraram muita força da política institucionalizada. Essas grandes corporações têm tido um peso muito forte e independente dos partidos, e elas estão no governo e nas câmaras do Estado. Enfim, a política é a grande derrotada nesse processo.

IHU On-Line - Como avalia o Estado enquanto investidor e financiador de grandes investimentos como as obras do PAC? O Estado deve ou não intervir na economia desta maneira?

Luiz Werneck Vianna – O Estado é como a central de inteligência de todo esse processo, na medida em que é ele que orienta o movimento de expansão da ordem burguesa e de concentração e verticalização do capital, de racionalização do sistema produtivo e se empenha em otimizar todas as possibilidades de expansão internas e externas. Mas ele não está atuando acima das partes. Não se trata de um Estado patrão como na construção clássica do bonapartismo de que Marx tratou no 18 Brumário. Na verdade, o que há é uma associação, uma vinculação entre política e economia, governo e empresas, governos e atores políticos e empresariais, que, juntos, no Estado e no governo, implementam essa política.

IHU On-Line - Esse projeto é positivo ou negativo para o país pensando num projeto de nação a longo prazo? Quais as implicações sociais e econômicas da reestruturação do capitalismo?

Luiz Werneck Vianna – Esse projeto é um aprofundamento da experiência burguesa brasileira, inclusive, encarando a questão social de frente. Ao mesmo tempo em que tutela os movimentos sociais, mantém a sociedade desorganizada, com políticas de clientela de massa. Por onde a política vai passar? Ela tem passado por esse “parlamento” das grandes corporações, que tem sua sede no interior do próprio governo. Então, o ministro da agricultura pode perfeitamente conviver com o ministro do meio ambiente e o do desenvolvimento agrário. Cada um deles é portador de interesses determinados, mas esses conflitos são retidos no interior do governo, e apenas residualmente se manifestam no plano da sociedade. O que está unificando o país hoje é um projeto expansionista burguês com vocação grão-burguesa.

Na questão social, a incorporação social aumenta, as políticas se tornam mais abrangentes, embora sejam lastimavelmente de pouco alcance. A educação é de péssima qualidade, e não há indicadores de mudança próxima.

IHU On-Line - E o que dizer do fortalecimento do sistema financeiro nacional?

Luiz Werneck Vianna – Conforme se observa, o sistema financeiro está cada vez mais concentrado. O fato de o Banco do Brasil ter passado bem nessa prova de fogo que foi a crise de 2008 veio reforçar esse processo de concentração. Com a forte representação que tem o presidente do Banco Central, na política brasileira de hoje, o sistema financeiro conseguiu de fato, embora isso ainda não tenha expressão legal, a autonomia do Banco Central quanto aos decisores políticos.

IHU On-Line - Que Brasil está se configurando após o segundo governo Lula?

Luiz Werneck Vianna – Sem dúvida, pelo prisma social é uma geração perdida. A sociedade está mais organizada, educada? Definitivamente não está. Sua economia está mais vibrante, potente? Está, sem dúvida. O Estado brasileiro está forte? Está. Então, temos que fazer esse balanço. Os resultados dependem muito dos valores de quem realiza esse balanço. Eu gostaria de ver uma sociedade mais organizada, instituída, mais potente, com partidos fortes, representativos, com sindicatos autônomos, com movimentos sociais desvinculados do Estado, com um processo de discussão amplo, aberto às raízes da vida social. A minha opção seria essa. Mas o mundo gira do jeito dele.

IHU On-Line – Dependendo do resultado das eleições deste ano, o atual modelo econômico pode mudar?

Luiz Werneck Vianna – Dilma e Serra têm perfis muito parecidos. Vejo dificuldades para a preservação desse modelo, mas algo dele vai subsistir.
Tome, por exemplo, a questão da legislação social e trabalhista, onde há projetos que se antagonizam na sociedade. Todos esses conflitos latentes muito poderosos vêm sendo administrados no sentido de serem resolvidos no interior do governo. A questão toda é que quando isso não for possível, quando esses conflitos tomarem as ruas, quando cada lado procurar se impor na sociedade pela sua capacidade de pressão e intervenção, não haverá o Lula para administrá-los. Na mesma direção está a questão da reforma tributária, a questão agrária e todas as outras.

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Entrevista publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos.

quarta-feira, 24 de março de 2010

PNDH III e o Jornal Nacional.




O tratamento dispensado pela mídia hegemônico - Rede Globo, Veja etc. - ao debate em torno do PNDH III é revelador dos ardis políticos e ideológicos desta, no sentido de colocar a chamada opinião pública contra o Plano, através da "denúncia" de supostos elementos autoritários - restrição da liberdade de expressão e de imprensa, ampliação do poder de intervenção do Estado.

No que concerne aos ardis ideológicos e ao tratamento nefasto dado pelos grandes meios de comunicação, leia abaixo o artigo do professor da UNB, jornalista e sociólogo Venício A. de Lima publicado no
Observatório da Imprensa. No artigo, Venício expõe o parcialismo ideologicamente comprometido e a manipulação dos fatos realizado pelo Jornal Nacional. Confiram!


"Excrescências" do direito à comunicação

Por Venício A. de Lima*

Desde sua publicação no final de dezembro de 2009, o III Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) tem sido objeto de violenta campanha conservadora apoiada e, em parte, promovida pela grande mídia. O tema já foi tratado inúmeras vezes neste Observatório (ver, por exemplo, “A mídia contra a Constituição” e “A unanimidade reacionária”).

Contra o III PNDH vale tudo: quem discorda de uma de suas propostas ataca o conjunto do plano, coloca tudo no mesmo saco, como se não houvesse distinção entre descriminalização do aborto e mediação de conflitos agrários. E, para o ataque à única diretriz referente ao direito à comunicação, são utilizadas até mesmo citações de propostas de “controle social da mídia” que simplesmente não constam do III PNDH (2009) e estão, ao contrário, no II PNDH (2002) [veja abaixo o texto integral da Diretriz 22].

Excrescências

Os opositores deram, agora, um passo à frente no vale-tudo de suas acusações: passaram a divulgar “afirmações” do ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) sobre modificações no III PNDH que, na verdade, nunca foram feitas.
E mais: a presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ) – a mesma que comparou o papel da entidade ao da deusa mitológica Atenas-Minerva, de ética questionável (ver “Atenas, a ANJ e a liberdade”) – chamou o III PNDH de “excrescência” [cf. "Ações contra tentativa de cercear a imprensa", O Globo, 19/3/2010, pág. 10).
Excrescência é uma palavra feia que, na verdade, soa pior do que seu significado – segundo o Aurélio, "demasia, excesso, superfluidade". Aproveito a palavra utilizada pela presidente da ANJ para descrever algumas excrescências que estão sendo praticadas pela grande mídia no vale tudo contra o III PNDH.

Manipulação grotesca

Após a reunião do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH) em que foi apresentado o III PNDH, acompanhada por jornalistas, inclusive da Rede Globo, na terça-feira (16/3), o ministro da SEDH conversou com alguns repórteres. Reafirmou que havia disposição do governo de rever três pontos do III PNDH: defesa ao direito ao aborto, condenação do uso de símbolos religiosos em prédios públicos e criação de novos mecanismos de mediação de conflitos agrários.

Perguntado por um repórter do Estado de S.Paulo se "no capítulo da imprensa há algum reparo ou não?", o ministro respondeu literalmente:
"No capítulo da imprensa não estamos fechados para fazer reparos. Agora, há pouco ainda relia, pela milésima vez, `definir critérios editoriais de ranking´, e não conseguimos nos convencer de que haja aí a menor intenção de censura a imprensa. Esse governo, por todos os seus ministros, pelo presidente, dezenas de vezes, reafirma que é absolutamente contra qualquer tipo de censura à imprensa.

O presidente Lula declara: `Eu sou fruto da liberdade de imprensa´. Então, nesse sentido, foi interpretado como se fosse intenção de censura aquilo que é um chamamento à mídia para parcerias, para engajamento, das próprias entidades empresariais, dos sindicatos de jornalistas do Brasil inteiro, dos profissionais, para entendermos juntos as nossas co-responsabilidades. Então o que está dito lá é definir critérios editoriais de ranking, pra premiar, pra valorizar as boas matérias, como já há em inúmeras experiências, o prêmio Vladmir Herzog de jornalismo e Direitos Humanos; o prêmio da ANDI, e também no ranking, localizar, na programação, programas que eventualmente tenham conotação racista, de discriminação à mulher, que sejam homofóbicos. O Brasil já tem instrumentos, para esse ranking sendo feito, o MP, defensores, as autoridades constituídas tomarem as iniciativas adequadas.

Então, nesse sentido o ranking pode ser feito em parceria com as próprias empresas, elas podem ser convidadas a isso, seja com os Direitos Humanos, seja com o MJ, onde está sediada a classificação indicativa, seja no próprio Ministério das Comunicações. Então o que nós estamos fazendo no momento é fazer o diálogo sereno, o debate, explicando que não há nenhuma(...). E se houver uma argumentação de que determinado aspecto, determinada ação, das 521, 500 de grande acordo e polêmica em torno de 20, que merece reparo porque pode suscitar uma interpretação equivocada, também incluiremos esse reparo. [Transcrição da Assessoria de Comunicação Social da SEDH)

Na mesma noite, o Jornal Nacional da Rede Globo, deu a chamada: "O governo admite alterar pontos mais polêmicos do Programa Nacional de Direitos Humanos". No telejornal, o apresentador leu a seguinte nota coberta:
"O secretário nacional de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, declarou nesta terça-feira que serão alterados quatro pontos do programa que provocou polêmica com setores da sociedade.
Segundo Vannuchi, vai ser retirada do Programa de Direitos Humanos a parte que previa negociação de invasores de terra com uma comissão do governo antes de se recorrer à Justiça.

O plano não vai mais tratar da descriminalização do aborto, nem da proibição de símbolos religiosos em prédios públicos. O secretário disse ainda que vai alterar a proposta de impor um limite à autonomia das empresas de comunicação. A versão final deve sair em abril [ver aqui].
Os três pontos que poderiam ser alterados se transformaram em quatro, incluída a referência a uma “proposta de impor um limite à autonomia das empresas de comunicação” que, além de não ser especificada, também não foi mencionada na fala do ministro da SEDH.

Curiosamente, no dia seguinte, 17 de março, a matéria sobre o assunto publicada no jornal O Globo sob o título “Estamos dispostos a fazer correções”, cita os três pontos relacionados pelo ministro e não faz qualquer referência ao “quarto” ponto mencionado no JN [cf. O Globo, 17/3/2010, pág. 10].

Partidarização assumida

Após encontro na Fecomercio, que reuniu representantes da ANJ, da Abert e da Aner, e discutiu a possibilidade de ingresso no Supremo Tribunal Federal (STF) contra o III PNDH, no dia 18 de março [cf. "Ações contra tentativa de cercear a imprensa", O Globo, 19/3/2010, pág. 10), a presidente da ANJ – que é também diretora-superintendente do Grupo Folha – afirmou:
"A liberdade de imprensa é um bem maior que não deve ser limitado. A esse direito geral, o contraponto é sempre a questão da responsabilidade dos meios de comunicação. E, obviamente, esses meios de comunicação estão fazendo, de fato, a posição oposicionista deste país, já que a oposição está profundamente fragilizada. E esse papel de oposição, de investigação, sem dúvida nenhuma incomoda sobremaneira o governo."

A presidente da ANJ assume publicamente que os jornais estão desempenhando o papel de partidos de oposição ao governo, vale dizer, estão agindo partidariamente, e ainda justifica: a razão é que "a oposição está profundamente fragilizada".

Estratégia conservadora

Em artigo recente, o professor Laurindo Lalo Leal, da ECA-USP, escreveu com propriedade sobre a campanha conservadora contra o III PNDH, em particular, e contra as propostas relativas ao direito à comunicação. Para ele, a campanha faz parte de uma estratégia conservadora que é nossa velha conhecida.

"Elege-se um tema de impacto que tenha amplo apoio na sociedade e se atribui ao adversário a intenção de destruí-lo. No caso, a democracia e a liberdade de expressão. Dizem que o governo elaborou um Plano Nacional de Direitos Humanos propondo o controle social da mídia. Repetem isso à exaustão e passam ao ataque."
Para aqueles que não se esquecem do passado é impossível não lembrar de situações históricas em que as bandeiras eram outras, mas a estratégia, a mesma. É exatamente isso o que está sendo feito hoje com o suporte e a participação da grande mídia e a liderança de suas entidades representativas: ANJ, Abert e ANER. Até onde se pretende chegar, não se sabe.

A escalada dos ataques, todavia, sobe a cada dia. E no vale-tudo para que se atinjam os objetivos, vale qualquer excrescência.

(*)Venício A. de Lima é jornalista, sociólogo, mestre, doutor e pós-doutor pela Universidade de Illinois; pós-doutor pela Universidade de Miami; professor-titular de Ciência Política e Comunicação aposentado da Universidade de Brasília; fundador e primeiro coordenador do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política da UnB, ex-professor convidado da EPPG-UFRJ, UFPA, UFBA, UCB e UCS, no Brasil, e das universidades de Illinois, Miami e Havana.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Para continuar a falar de política externa...




As últimas viagens internacionais e discursos do presidente Lula dizem muita coisa sobre como a política externa num mundo pós-guerra fria é uma atividade que exige bastante versatilidade. O enfoque e a defesa de posicionamentos referentes à temas específicos é o que, hoje, cada vez mais orienta a diplomacia. A lógica dicotômica dos blocos – EUA, URSS, Terceiro-mundismo, etc. - da Guerra Fria cedeu o passo a algo bem mais complexo, interdependente. Um inimigo ou aliado em comum deixou de ser o principal eixo aglutinador da agenda da política externa para dá lugar a uma série de disputas em torno de demandas, interesses e temas particulares cujos posicionamentos variam de acordo com as situações, agentes e arenas de decisão em foco.

Em um primeiro olhar, os últimos rumos da política externa brasileira podem sugerir uma sensata suspeita de incoerência, um uso abusivo da máxima: “um peso duas medidas”. Por outro lado, as sensibilidades mais calejadas e que se ocupam mais ordinariamente do mundo da política dirão, certamente, em seu realismo duro, que nada há de anômalo nisso. Pelo contrário, como a política é uma atividade dinâmica e movediça, tal conduta seria de fato uma virtude necessária. Para estes últimos, dizer uma coisa e pensar outra, dizer isso em tal momento e lugar e fazer aquilo em outro é, na verdade, humano demasiado humano, e, por isto mesmo, político demasiado político. A política tem muito a ver com esse jogo de cenas e de impressões, de aparência de formas e figurações, variável segundo os espectadores e atores em palco.

Ao sabor das conveniências e situações, defende-se, muito corretamente, a meu ver, a justiça da luta política palestina, e, no entanto, no mesmo gesto se faz vista grossa com respeito à luta dos presos políticos em Cuba. O golpe hondurenho é expressamente condenado, mas isto não significa uma postura similar quanto à continuada inexistência de mecanismos eleitorais através dos quais os cidadãos cubanos possam eleger seus governantes.

Se por lado, a ousadia em defender em pleno parlamento israelense a criação do Estado Palestino - mais uma vez, a meu ver, um correto posicionamento - atesta progressismo e coragem, por outro, estes são suavizados quando, no discurso contrário a produção de armas nucleares, Lula, por exemplo, deixa de mencionar o Irã. Aliás, o mesmo país em que a democracia, as manifestações de descontentamento social e político são duramente reprimidas, e com a mesma violência com que elas são nos guetos da Faixa de Gaza pelas tropas truculentas de Israel.

É louvável, em diversos pontos, a atuação e a agenda diplomática que o presidente Lula almeja instituir, apesar dos deslizes e incongruências com que, por vezes, suas “visitas” e negociações internacionais ocasionam. A construção de uma agenda internacional progressista, isto é, que se defina no sentido de levar às arenas de decisão e ao debate internacional questões que dizem respeito à expansão de direitos de cidadania - participação democrática, direitos humanos, políticas de reconhecimento e de redistribuição etc. -, dentro das esferas estatais e também no âmbito internacional, passa pela contingência de um campo de relações e articulação de sentidos diversos, ou seja, cujos posicionamentos e discursos variam de acordo com os agentes, demandas e interesses em jogo num contexto particular. Porém, reconhecer tal condicionamento e a necessária prudência em relação aos efeitos da fala e das impressões não significa sustentar que ela, a agenda política internacional, permaneça integralmente à mercê de uma “política de resultados e impressões”, a sabor das conveniências, dos negócios envolvidos e almejados.

Obviamente, em circunstâncias de disputa por resultados e lucros, é ingênuo querer se contentar com pureza de intenções, autenticidade, coerência, etc., isto é, o que Max Weber chamaria de “motivos éticos na política”, e fazer destes o marco de referência para a avaliação ou análise da esfera política. Mas pensar e experimentar a política como exercício do poder e/ou luta pelo poder apenas é circunscrevê-la tão somente ao espaço das instituições oficiais, ao campo de ação dos profissionais destas e seus ardis, e, desse modo, negar sua capacidade de questionamento e de invenção a propósito das formas de vida que estamos enredados e acerca daquela que almejamos.

Questionar os propósitos dos temas e das situações em jogo e o desenho normativo de sociedade que eles indicam, isto é, observar e inscrever os efeitos práticos possíveis ou efetivos na vida das pessoas, independente dos interesses envolvidos, eis o que deve balizar a tomada de decisão em defesa de uma agenda progressista. Nisto, coragem e alguma coerência são indispensáveis, a meu ver.

Alyson Thiago F. Freire

sábado, 20 de março de 2010

"EUA lêem erroneamente a política externa do Brasil"




Abaixo um pequeno artigo do sociólogo estadunidense Immanuel Wallerstein, bastante conhecido, nos meios acadêmicos e nos movimentos anti-globalização, por seus trabalhos e posicionamentos referentes à economia política internacional. Confiram!

Quando, por volta de 1970, os Estados Unidos se deram conta pela primeira vez que sua dominação hegemônica era ameaçada pela crescente força econômica (e, por conseqüência, geopolítica) da Europa Ocidental e do Japão, trataram de mudar sua postura, buscando evitar que assumissem uma posição demasiado independente nos assuntos mundiais.

Os EUA enviaram a seguinte mensagem, ainda que não com palavras: até agora temos tratado vocês como satélites e exigido que nos sigam sem questionamento algum na cena mundial. Mas agora vocês estão mais fortes. Assim, os convidamos para ser sócios, sócios menores, que tomarão parte conosco na tomada de decisões coletivas, sempre e quando não se afastem demasiado por conta própria. Esta nova política estadunidense foi institucionalizada de diferentes maneiras – especialmente com a criação do G-7, o estabelecimento da Comissão Trilateral e a invenção do Fórum Econômico Mundial de Davos como espaço de encontro da “amigável” elite mundial.

O objetivo principal dos EUA era desacelerar a decadência de seu poder geopolítico. A nova política funcionou durante cerca de 20 anos. Dois eventos sucessivos causaram o seu fim. O primeiro foi a desintegração da União Soviética (1989-1991), que desmantelou o argumento principal que os EUA tinham usado com seus “sócios”, a saber, que não deviam ser demasiado “independentes” no cenário mundial. O segundo evento foi o militarismo “macho” unilateral e auto-derrotado do regime de Bush. Em vez de restaurar a hegemonia estadunidense resultou no devastador fracasso dos EUA em 2003, quando não conseguiu obter o respaldo do Conselho de Segurança da ONU para a invasão do Iraque.

As políticas neoconservadoras de Bush foram um absoluto tiro pela culatra e converteram o lento declínio do poder geopolítico estadunidense em uma queda precipitada. Hoje, quase todos reconhecem que os EUA não têm a influência que já tiveram uma vez.

Poderia se pensar que os EUA teriam aprendido algumas lições com os erros do governo Bush. Mas parece que hoje está tentando repetir o mesmo cenário com o Brasil. Desta vez, não passarão 20 anos para que esse intento se mostre fracassado. A principal jogada geopolítica de Obama até aqui foi converter a reunião do G-8 em uma reunião de um G-20. O grupo crucial que foi adicionado à reunião é o formado pelos chamados países do BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China). O que os EUA oferecem ao Brasil é “associar-se”. Isso fica muito claro em um informe recente do grupo de trabalho do Conselho de Relações Exteriores chamado de “US-Latin America Relations: A New Direction for a New Reality” (As relações Estados Unidos-América Latina:uma nova direção para uma nova realidade). O Conselho de Relações Exteriores é a voz do establishment e este informe, provavelmente, reflete o pensamento da Casa Branca.

Há duas frases cruciais neste informe relacionadas ao Brasil. A primeira diz: “o Grupo de Trabalho considera que aprofundar as relações estratégicas com Brasil e México e reformular os esforços diplomáticos com Venezuela e Cuba não só estabelecerão uma maior interação frutífera com estes países, como também transformarão positivamente as relações Estados Unidos-América latina. A segunda frase do documento refere-se diretamente ao Brasil: “O Grupo de Trabalho recomenda que os EUA construam sua colaboração existente com o Brasil no que diz respeito ao etanol para desenvolver uma sociedade mais consistente, coordenada e ampla que incorpore um amplo leque de assuntos bilaterais, regionais e globais”.

Este informe foi publicado em 2009. Em dezembro, o Centro de Relações Exteriores organizou com a Fundação Getúlio Vargas um seminário sobre o “Brasil emergente”. Coincidentemente, o seminário foi realizado justamente no momento em que ocorriam a crise política hondurenha e a visita do presidente Mahmud Ahmadinejad ao Brasil. Os participantes estadunidenses no seminário não falavam a mesma linguagem que os brasileiros. Eles defendiam que o Brasil deveria atuar como uma potência regional, ou seja, como um poder subimperial. Não conseguiam entender a desaprovação do Brasil frente aos acordos militares e econômicos da Colômbia com os EUA. Pensavam que o Brasil deveria assumir algumas responsabilidades para a manutenção da “ordem mundial”, o que significava unir-se aos EUA em sua pressão sobre as políticas nucleares do Irã, enquanto os brasileiros achavam que a posição dos EUA sobre o Irã era “hipócrita”. Finalmente, enquanto os participantes dos EUA olhavam a Venezuela de Chávez como “longe de ser democrática”, os brasileiros faziam eco à caracterização da Venezuela feita pelo presidente Lula: a de que o país sofre de “um excesso de democracia”.

Em janeiro de 2010, Susan Purcell, uma analista estadunidense conservadora, publicou no jornal Miami Herald uma crítica à política de seu país sobre o Brasil, a qual denominou de “pensamento ilusório”. Ela pode ter razão. Desde seu ponto de vista, “Washington precisa repensar suas suposições acerca do grau em que pode depender do Brasil para lidar com problemas políticos e de segurança na América Latina, de um modo que seja compatível com os interesses estadunidenses”. Também em janeiro, Valter Pomar, secretário de Relações Internacionais do PT, o partido de Lula, disse que a intenção estadunidense de constituir um G-20 era “uma tentativa de absorver e controlar os pólos alternativos de poder…uma tentativa de manter a multipolaridade sob controle”. Ele insistiu que, diante do conflito entre respaldar os interesses capitalistas no mundo como poder subimperial e apoiar “os interesses democrático-populares”, o Brasil terminaria assumindo esta segunda postura.

Dada a maior força da Europa Ocidental e do Japão, no início dos anos 70, os EUA lhes ofereceram o status de sócios menores. A França e a Alemanha optaram, em 2003, por prosseguir na direção de um papel mais independente no mundo. O Japão, em suas eleições nacionais de 2009 e na eleição municipal de 2010 na ilha de Okinawa (que teve a vitória de um político que se opõe à instalação de uma base norte-americana), parece optar pelo mesmo caminho. Dado o crescimento de sua força, ofereceram ao Brasil, em 2009, a condição de “sócio menor”. Parece que o país insistirá, quase de imediato, em manter um papel independente no mundo.

Tradução: Katarina Peixoto

Fonte: Fundação Perseu Arbemo – http://www2.fpa.org.br/

Milton Friedman não salvou o Chile


Bret Stephens, colunista do Wall Street Journal, disse a seus leitores que o espírito de Milton Friedman sobrevoava o Chile como um protetor. Segundo Stephens, as medidas radicais pró-livre mercado prescritas ao ditador chileno Augusto Pinochet por Milton Friedman e seus infames “Chicago Boys” constituem a razão pela qual o Chile é uma nação próspera que dispõe “de códigos de edificação que figuram entre os mais rigorosos do mundo”. Não é verdade. O código moderno de edificação sísmica no Chile, redigido para resistir a terremotos, foi adotado em 1972, durante o governo Allende. O artigo é de Naomi Klein, escritora, e publicado por Carta Maior, 19-03-2010.

Eis o artigo.

Desde que a desregulamentação causou um desastre econômico mundial em setembro de 2008 e todo mundo voltou a ser keynesiano, não tem sido fácil posar de seguidor fanático do falecido economista Milton Friedman. A sua variedade de fundamentalismo de livre mercado está tão desacreditada que seus admiradores estão cada vez mais desesperados por reivindicar vitórias ideológicas, por mais exageradas que sejam tais reivindicações. Vamos considerar o caso de um exemplo especialmente desagradável. Apenas alguns dias depois de um terremoto demolidor golpear o Chile, Bret Stephens, colunista do Wall Street Journal, informava seus leitores que “o espírito de Milton Friedman sobrevoava o Chile como um protetor”, uma vez que, “graças a ele em boa medida, o país havia resistido a uma tragédia que poderia ter se tornado um apocalipse. Não foi por acaso que os chilenos viviam em casas feitas com tijolos – e os haitianos em casas de palha – quando chegou o lobo tentando derrubá-las com um sopro”.

Segundo Stephens, as medidas radicais pró-livre mercado prescritas ao ditador chileno Augusto Pinochet por Milton Friedman e seus infames “Chicago Boys” constituem a razão pela qual o Chile é uma nação próspera que dispõe “de códigos de edificação que figuram entre os mais rigorosos do mundo”.

Há um problema de vulto com essa teoria: o código moderno de edificação sísmica no Chile, redigido para resistir a terremotos, foi adotado em 1972. A data é enormemente significativa, pois se trata de um ano antes de Pinochet tomar o poder mediante um sangrento golpe de Estado apoiado pelos Estados Unidos. Isso quer dizer que, se há alguém que merece o crédito por essa lei, não é Pinochet, mas sim Salvador Allende, o presidente socialista chileno democraticamente eleito (o certo é que se deve agradecer a muitos chilenos, uma vez que as leis respondem a uma história cheia de terremotos, e as primeiras disposições foram adotadas na década de 1930).

Parece significativo ainda que a lei tenha sido promulgada em meio a um asfixiante embargo econômico (“que a economia grite”, grunhiu, segundo a fama, Richard Nixon quando Allende ganhou as eleições em 1970). O código de edificações foi atualizado nos anos 90, bem depois que Pinochet e os Chicago Boys abandonassem finalmente o poder e o Chile retornasse á democracia.

Não é surpreendente, como aponta Paul Krugman, que Friedman fosse ambivalente em relação aos códigos de edificação, considerados por ele como mais uma violação da liberdade capitalista. Quanto ao argumento de que as políticas de Friedman são a razão pela qual os chilenos vivem em “casas de tijolo” ao invés de “casas de palha”, fica claro que Stephens não sabe nada do Chile antes do golpe. O Chile dos anos 60 gozava do melhor sistema sanitário e educacional do continente, além de dispor de um efervescente setor industrial e de uma classe média em rápido crescimento. Os chilenos acreditavam em seu Estado, razão pela qual elegeram a Allende para ampliar ainda mais esse projeto.

Após o golpe e o assassinato de Allende, Pinochet e seus Chicago Boys fizeram tudo o que puderam para desmantelar a esfera pública chilena, privatizando as empresas públicas e reduzindo as regulamentações financeiras e comerciais. Criou-se uma enorme riqueza neste período, mas a um preço terrível: no início dos anos 80, as medidas de Pinochet, recomendadas por Friedman, tinham provocado uma rápida desindustrialização, multiplicando o desemprego por dez e criando uma explosão de bairros pobres repletos de barracos absolutamente instáveis.

Essas medidas levaram também a uma crise de corrupção e a uma dívida tão grave que, em 1982, Pinochet se viu forçado a demitir os assessores dos Chicago Boys e nacionalizar várias instituições financeiras que tinham sido alvo do processo de desregulamentação (soa familiar?).

Felizmente, os Chicago Boys não conseguiram destruir tudo o que foi construído por Allende. A empresa nacional de cobre, Codelco, continuou nas mãos do Estado, gerando riqueza para os cofres públicos e impedindo que os Chicago Boys mergulhassem a economia chileno em um completo abismo. Tampouco conseguiram destruir o rigoroso código de edificação do Chile, um descuido ideológico pelo qual devemos todos agradecer.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Que a pintura seja carne!

Deixa-vos na companhia da arte de Lucian Freud...







terça-feira, 16 de março de 2010

Sobrecarga no lar impacta ascensão feminina no trabalho, afirma comunicado do IPEA.

IPEA divulgou comunicado sobre a desigualdade de gênero no mercado e no emprego doméstico. Confira abaixo.

A persistente responsabilização das mulheres pelos trabalhos domésticos não remunerados é apontada como fator preponderante na desigualdade entre homens e mulheres no mercado de trabalho. Essa é uma das conclusões do Comunicado do Ipea n° 40, Mulheres e trabalhos: avanços e continuidades, que o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgou nesta segunda-feira, 8, Dia Internacional da Mulher.

Apesar de ocuparem cada vez mais postos no mercado de trabalho, 86% das mulheres ainda são responsáveis pelos trabalhos em casa, enquanto os homens são 45%, segundo dados de 2008 do IBGE. Elas dedicam em média quase 24 horas por semana aos afazeres domésticos. E os homens, apenas 9,7 horas.

O estudo trata, ainda, das consequências dessa naturalidade em atribuir às mulheres os afazeres domésticos. Os efeitos vão desde a menor disponibilidade da mulher às jornadas de trabalho que exijam mais tempo, à ação dos estereótipos e a ocupação de 42% das mulheres em posições precárias, em comparação com 26% dos homens.

A coordenadora de Igualdade e Gênero do Ipea, Natália Fontoura, afirmou que, se de um lado há muitas trabalhadoras precarizadas, no outro extremo há um crescente grupo de profissionais liberais mais escolarizadas e bem remuneradas que podem se lançar no mercado de trabalho porque delegam as responsabilidades familiares a outras mulheres, as empregadas domésticas. "Isso cria um encadeamento perverso de mulheres ligadas às atribuições que deveriam ser de todos, independentemente de ser homem ou mulher", disse a técnica.

Políticas públicas As mudanças nos arranjos familiares, com quase 35% de mulheres chefes de família, o tempo médio de estudo das mulheres de 7,6 anos - que já é superior ao dos homens (7,2 anos) -, e o percentual crescente de mulheres que entram no mercado de trabalho são algumas das principais mudanças registradas entre 1998 e 2008 no Brasil. Apesar disso, o Comunicado mostra que praticamente nada mudou com relação ao trabalho doméstico no que diz respeito à distribuição dos afazeres entre homens e mulheres.

Natália Fontoura alertou para o papel das políticas públicas e das instituições no sentido de promover uma mudança cultural e estimular o compartilhamento de atividades domésticas. A pesquisadora sugeriu uma licença paternidade maior e também licenças paternais que tanto mulheres quanto homens poderiam usar para resolver emergências dos filhos. "Isso muda a visão do empregador. Se qualquer um pode tirar essa licença, na hora de escolher entre uma mulher ou um homem, a mulher não será mais discriminada, além de o pai ganhar mais tempo para a família", concluiu.


Leia aqui o Comunicado do Ipea n° 40 na íntegra.

Veja aqui os gráficos de apresentação do comunicado.

Fonte: http://www.ipea.gov.br/

segunda-feira, 15 de março de 2010

Castigo e Culpa III: O golpe de mestre.



No texto passado, vimos que Nietzsche lança mão de duas suposições para compreender genealogicamente o sentimento de culpa. Primeiro, como sintoma da relação credor-devedor, segundo, como sintoma da relação entre os vivos e os antepassados. Se na primeira hipótese é arbitrária a associação lógica entre inadimplência e culpa, - já que não necessariamente “dívida” implica sentir-se culpado - a segunda, a meu ver, goza de uma maior consistência e propriedade, pois a culpa não surge, como num passe de mágica, de uma relação direta de não-pagamento, mas ela é produzida lentamente, introjetada aos poucos no mundo e na cabeça dos vivos em sua relação com os antepassados até que estes adquiram feições de divindade.

O declínio da forma de organização da “comunidade” baseada nos vínculos de sangue não significou a extinção do sentimento de culpa ou seu congelamento. O surgimento dos monoteísmos intensificou-no. Iaveh, de um deus festejado, cujo culto centrava-se em homenagens converte-se num deus temido, vingativo, de ira implacável para com as faltas dos seus. No entanto, o golpe de mestre que levou o sentimento de culpa ao seu ponto culminante ainda estava por vir. É com o advento do cristianismo que o temor ante a punição e o temor de não corresponder acenderão nas almas dos homens a forma mais substancial, a forma máxima do sentimento de culpa.

O golpe de mestre do cristianismo consistiu, segundo Nietzsche, no seguinte estratagema: Deus, o credor máximo, se sacrifica pelos homens pecadores – ou seja, os devedores. Desse modo, a dívida que na relação de direito privado poderia ser paga, negociada ou extinta e que em relação aos antepassados era possível de ser honrada com feitos, conquistas, expansão, etc., com o sacrifício de Deus, a crucificação, seu pagamento transforma-se em algo impossível. Não há como ressarcir o Credor divino, pois Deus entregou sua vida pela possibilidade de remissão dos devedores, ou seja, apesar da dívida. O credor pagou a dívida! Não há mais possibilidade de troca – homenagem, festa, sacrifícios, feitos, conquistas... Cristo significa simultaneamente o aniquilamento da troca simbólica entre homens e deuses e um apelo à culpa.

Assim, o sofrimento do homem com ele mesmo, isto é, em termos nietzschenianos, a “má consciência”, é a matéria de cujo relevo o cristianismo extrai sua forma e força, no sentido de fazer do sofrimento responsabilidade dos homens, já que Deus pagou, e com preço de sangue, a dívida destes. A culpa é introduzida como manejamento da má consciência a partir do sacrifício do Deus-credor pelos pecadores-devedores humanos. Cristo converte-se num Deus universal, e a dívida para além da submissão, isto é, para além da culpa, tornar-se impagável. A salvação só é possível mediante a culpa, ou melhor, esta é condição sine qua non para a primeira.

A má consciência ergue-se em sentimento de culpa ao responsabilizar todos os homens, desde o nascimento, por sua dor e aflição; porquanto estes são, antes mesmo de tomarem consciência de si e do mundo, pecadores, devedores de uma dívida paga mas impossível de ser resgatada, o sacrifício de Cristo.

Se nos homens antigos, nas castas guerreiras, a má consciência era fonte de tensão entre forças antagônicas, no cristianismo, ela instala-se com um automartírio; uma agressão interna perpetrada contra o homem pelo próprio homem. Os deuses gregos que serviam para aplacar o sofrimento do homem, movê-lo e agitá-lo em busca de feitos e sentidos que imunizem a dor, portanto, a má consciência é experimentada como algo ativo, ela impulso a criar, a enfrentar. Ela é uma natureza inflamável. O uso do Deus cristão, todavia, nada tem de ativo, segundo Nietzsche. De acordo com o filósofo alemão, o cristianismo transforma o sofrimento, a culpa, naquilo mesmo que dá sentido ao mundo e que define a condição do homem.

"Existem maneiras mais nobres de se utilizar a invenção de deuses, que não seja para essa violação e automartírio do homem, na qual os últimos milênios europeus demonstraram sua maestria- isto se pode felizmente concluir, a todo olhar laçado aos deuses gregos, esses reflexos de homens nobres e senhores de si, nos quais o animal no homem se sentia divinizado e não se dilacerava, não se enraivecia consigo mesmo! Por muito e muito tempo, esses gregos se utilizavam de seus deuses precisamente para manter afastada a “má-consciência”, para poder continuar gozando a liberdade da alma: uso contrário, portanto, ao que o cristianismo fez do seu Deus."


O sofrimento consigo mesmo deixa de ser um solo propício para expansão da força, da vivacidade, um espaço impulsionador de liberdades para, com efeito, está em conformidade com tudo aquilo que expresse culpa; submissão, silêncio, humildade, mansidão, retidão, compaixão, confissão. O sentimento de culpa foi durante milênios o mais forte instrumento de dominação do cristianismo. A este devemos as feições mais conhecidas da culpa, por assim dizer: sua características de nos conduzir a um roer a si silencioso, remorso esteril e passivo, cabeça baixa, auto-rebaixamento.

Alyson Thiago F. Freire


* Todas as citações extraídas de:


NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

sexta-feira, 12 de março de 2010

Castigo e Culpa II: A "má consciência".


Boa parte da obra de Nietzsche e de sua crítica à moral judaico-cristã e ao mundo moderno consiste numa tentativa de rastrear a proveniência e os incidentes da categoria de dívida e o sentimento de culpa. Isto que de tão sedimentado em nossas almas acaba por ser tratado como o mais natural dos sentimentos humanos. E que leva-nos a pensar que o sentir-se culpado seria uma espécie de inclinação natural da consciência, decorrente da função intrínseca ao homem de avaliar suas ações e escolhas, portanto prova do caráter intrinsecamente moral do homem. A culpa como consciência de si é também entendida, muitas vezes, como uma consequência, quase lógica, do castigo. O que reforça a tese anterior, pois ao ser castigado, o homem ponderaria acerca dos seus atos e tomá-los-ia como repreensíveis. Em Nietzsche, essa ingenuidade é um disparate. O sentimento de culpa,este voltar a si mesmo, auto-escrutínio, a consciência de si, nada tem de natural ou condição humana, tampouco culpa e castigo não possuem relação de correspondência. Ao contrário:

“Mas se considerarmos os milênios anteriores à história do homem, sem hesitação poderemos afirmar que o desenvolvimento do sentimento de culpa foi detido, mais do que tudo, precisamente pelo castigo – ao menos quanto às vítimas da violência punitiva. Não subestimemos em que medida a visão dos procedimentos judiciais e executivos impede o criminoso de sentir seu ato, seu gênero de ação, como repreensível em si: pois ele vê o mesmo gênero de ações praticado a serviço da justiça, aprovado e praticado com boa consciência: espionagem, fraude, uso de armadilhas, suborno, toda essa arte capciosa e trabalhosa dos policiais acusadores, e mais aquilo feito por princípio, sem o afeto sequer para desculpar, roubo, violência, difamação, aprisionamento, assassínio, tortura, tudo próprio dos diversos tipos de castigo – ações de modo algum reprovadas e condenadas em si pelos juízes, mas apenas em certo aspecto e utilização prática. A “má consciência”, a mais sinistra e mais interessante planta da nossa vegetação terrestre, não cresceu nesse terreno – de fato, por muitíssimo tempo os que julgavam e puniam não revelaram consciência de estar lidando com um “culpado”. Mas sim com um causador de danos, com um irresponsável fragmento do destino. E este, sobre o qual, também parte do destino, se abatia o castigo, não experimentava outra “aflição interior” que não a trazida pelo surgimento súbito de algo imprevisto, como um terrível evento natural, a queda de um bloco de granito contra o qual não há luta”.

Causador de danos, não um culpado. Acaso terrível, não uma dívida impagável. Para entendermos, a origem histórico-antropológica do sentimento de culpa, em Nietzsche, se faz necessário, primeiro, definir um outro conceito; “má consciência”. Sejamos direto: má consciência diz respeito ao sofrimento do homem com ele mesmo, provocado, segundo Nietzsche, pela dor da interiorização dos instintos, à sua inibição necessária e decorrente da socialização do animal humano. A má consciência é um produto histórico-fisiológico do processo de civilização, seu correlato trágico.

A instalação da ordem social e a domesticação dos humanos por um modo de existência gregário, mais ou menos racionalizado, fez com estes experimentassem um novo mundo, cujas habilidades requeridas fomentam disposições distintas daquelas oriundas dos velhos impulsos e instintos da caça, guerra, perseguição, prazer com o assalto do mundo das hordas. A ênfase se dá na formação de disposições intelectivas; pensar, inferir, calcular, combinar causas e efeitos, planejar, construir estrategicamente, regular, organizar, definir, distribuir, etc., oriundas das novas modalidades de práticas que constituem a forma de vida em sociedade. É a interiorização da vida instintiva que forma a “má consciência”:

“Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro – isto é o que chamo de interiorização do homem: é assim que no homem cresce o que depois se denomina sua "alma". Todo o mundo interior, originalmente delgado, como que entre duas membranas, foi se expandindo e se estendendo, adquirindo profundidade, largura e altura, na medida em que o homem foi inibido em sua descarga para fora.”.
A má consciência, o sofrimento do homem com ele mesmo, a dor pela interiorização e sublimação dos instintos, deve-se a um acontecimento histórico-antropológico que encerrou o humano no “âmbito da sociedade e da paz”; a queda do animal humano numa forma de existência sustentada especialmente sobre o intelecto e suas disposições. Acontecimento cujos desdobramentos incidiram, inclusive, em sua fisiologia e psicologia, mas que não significa extinção dos velhos instintos. À primeira vista o termo má consciência pode ludibriar ao se inferir, apressadamente, que se trata de um sintoma negativo, decadente, maléfico. Trata-se antes, do que, segundo Nietzsche, torna o homem um animal interessante, pois a má consciência é a responsável pela tensão paradoxal do homem entre forças em luta; instinto e razão, esquecimento e memória, etc. Da agonística dessas forças, da contradição, pode nascer elementos – forças – que intensificam nossa potência, a criação de valores afirmativos.

O sentimento de culpa é algo que será introduzido como manejamento da "má consciência". Ao primeiro, filósofo alemão atribuirá diversas proveniências. Em Genealogia da moral, encontraremos a noção de culpa como um sintoma do conceito muito material de dívida privada, na relação credor-devedor. A meu ver, esta é a suposição mais inconsistente acerca da noção de culpa e sua correlação com o castigo em Nietzsche. Outra suposição: a relação entre os vivos e os seus antepassados. Esta, em meu entendimento é a mais interessante e plausível. O temor em relação ao poder e ao julgamento dos antepassados, fundadores da comunidade tribal, mistura-se com o reconhecimento segundo o qual a comunidade e a estirpe só subsistem até então graças aos esforços, sacrifícios e realizações dos antepassados. Há, portanto, uma dívida, uma obrigação permanente e forçosa, para muito mais além do que uma espécie de sentimento de dívida, que deve ser paga igualmente com sacrifícios e realizações: conquistas, expansão, fartura, alegria, coesão, etc.

O fato dos antepassados perdurarem, “em sua sobrevida como espíritos poderosos, de conceder à estirpe vantagens e adiamentos a partir de sua força” faz da dívida algo permanente e crescente para a geração atual. O reconhecimento e o estar em débito misturam-se com o temor de não corresponder, de falhar de sorte a irritar e desonrar os ancestrais. Assim, atribui-se, paulatinamente, aos antepassados poderes que vão assumindo proporções gigantescas até que estes desapareçam “na treva de uma dimensão divina inquietante e inconcebível – o ancestral termina necessariamente transfigurado em deus”. Eis aí, para Nietzsche, tanto a origem dos deuses quanto os primórdios do sentimento de culpa; uma origem no medo!

A transformação radical do sentimento de culpa, isto que vincula o homem a si mesmo, às suas ações, isto que o faz pensar e objetivar um si por meio do perscrutar sentidos, juízos, inferir conseqüências de suas ações, provêm da invenção do Deus cristão. Um golpe de mestre, diz Nietzsche, o qual veremos no próximo post.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Castigo e Culpa

O que quer aquele que castiga físico e moralmente? Que sentimentos experimenta e o que deseja incutir em suas vítimas? Dominar com poder exclusivo a alma e o corpo de outrem. Inscrever sua força e sua autoridade no corpo, e, assim, habitar a alma do outro a tal ponto que este reconheça, a um só tempo, a autoridade e o direito daquele que castiga e as falhas e faltas que o levaram-no a ser castigado por seu algoz. Legitimidade e culpa, eis a base da economia emocional que é incutida e que leva a vítima a desejar “voluntariamente” o seu algoz e a ornar o castigo com expectativas nobres cujo objetivo e justificativa consistiriam em edificar, melhorar, salvar, aprimorar, etc.

Mas como e quando a punição física converteu-se em punição moral? Diz-nos Nietzsche:

"Esses genealogistas da moral teriam sequer sonhado, por exemplo, que o grande conceito moral de ‘culpa’ teve origem no conceito muito material de ‘dívida’? Ou que o castigo, sendo reparação, desenvolveu-se completamente à margem de qualquer suposição acerca da liberdade ou não-liberdade da vontade? – e isto a ponto de se requerer primeiramente um alto grau de humanização, para que o animal ‘homem’ comece a fazer aquelas distinções bem mais elementares, como ‘intencional’, ‘negligente’, ‘casual’, ‘responsável’ e seus opostos, e a levá-las em conta na atribuição do castigo".

Segundo Nietzsche, o credor diante do não pagamento material da dívida substitui a crueldade física pela satisfação íntima e a sensação de poder experimentada em fazer o outro sofrer. Entretanto, o prazer extraído não consiste em apenas ver o sofrimento, o rebaixamento, a submissão do outro ou lhe causar tais coisas. Não, é o poder de lançar sobre o outro, o devedor, disposições mentais e de condutas, tais quais “intenção”, “responsabilidade”, “negligência”, “falsidade”, poder também de qualificá-lo e rebaixá-lo; “mentiroso”, “pecador”, “sem honra”, etc. Disto é que deriva o sentimento de satisfação em castigar moralmente.

Mas, ainda resta a principal questão: como os homens infligiram à dor sentimentos e sensações, digamos metafísicas, como culpa, prazer, resignação, e, deste modo, fizeram-na “doer mais” e penetrar mais fundo? Como o sentimento de culpa foi possível?

O irmão do papa nega pedofilia, mas admite que bateu nas crianças

O irmão mais velho do Papa Bento XVI, o padre Georg Ratzinger, admitiu que batia nos meninos integrantes do Coro dos Pardais do Duomo de Regensburg, do qual foi diretor entre 1964 e 1994. A declaração foi feita em uma entrevista ao jornal conservador e católico bávaro Passauer Neue Presse.

Georg Ratzinger pediu desculpas aos ex-meninos do Coro pelas surras e os abusos sofridos no passado.

Em suas revelações ao jornal bávaro, Ratzinger disse que às vezes deu bofetadas nas crianças do Coro e que soube dos seus pequenos coristas que o reitor do Internato em que os rapazes viviam batia neles sistematicamente com dureza e muitas vezes até sem nenhum motivo que pudesse levá-lo a se decidir por uma punição.

O padre afirmou que “era feliz no Coro”, mas que admitia “que muitas vezes ficava depressivo”, por não alcançar resultados que queria. “E, no início, eu muitas vezes distribuí tapas, mesmo que depois me sentia com a consciência pesada por ter feito isso”.

Sobre a violência com que o reitor do Internato tratava os menores, Ratzinger alegou que nada podia fazer, já que a instituição era independente e ele, na condição de maestro do coro, não tinha a autoridade para denunciá-lo.

O irmão do Papa chegou a afirmar que nunca surrou nenhum menino até causar-lhe escoriações ou lesões e que sentiu-se muito feliz quando, em 1980, foram vetadas as punições corporais. “Eu também, quando era criança, recebi bofetadas”, revelou.

Pedofilia

A entrevista ao jornal bávaro foi uma resposta à denúncias feitas no início deste mês de pedofilia no internato onde viviam os meninos cantores, em meados da década de 1960.

O compositor Franz Wittenbrink, que foi aluno do Coral até 1967, disse à revista alemã Der Spiegel que um ex-diretor do internato abusou sexualmente de vários meninos.

Georg Ratzinger teve seu nome envolvido nas acusações por ter sido diretor do coral durante trinta anos. Segundo Wittenbrink, “todos sabíamos [dos abusos cometidos] e não posso entender como o irmão do Papa, Georg Ratzinger, que dirigia a capela desde 1966, não podia estar a par”.

O irmão do Papa, por sua vez, negou ter conhecimento de casos de abusos sexuais no internato. “O problema dos abusos sexuais que agora foram revelados nunca havia sido abordado”, declarou.

Da mesma forma, o Vaticano, em nota, esclareceu que os casos de pedofilia ligados ao Coral não coincidem com o período em que o irmão do Papa Bento XVI esteve à frente da catedral. De acordo com declaração do atual bispo de Regensburg, Gerhard Ludwig Muller, ambos os casos ocorreram em 1958 e foram tornados públicos na ocasião, podendo ser considerados encerrados no sentido legal.

Fonte: Brasil de Fato.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Entrevista: ''O corpo magro, esbelto, é um corpo de classe''

Segue abaixo a entrevista com a psicóloga Joana de Vilhena Novaes, que atualmente coordena o Núcleo de Doenças da Beleza da PUC-Rio, onde pesquisa sobre "O corpo nas camadas populares".

Confira alguns trechos da entrevista. Para lê-la na íntegra clique aqui.

IHU On-Line – Como se construiu, ao longo do tempo, a obsessão nacional pelo corpo perfeito? Quais as origens do corpo se tornar objeto de culto e consumo?

Joana de Vilhena Novaes - Isso não tem nada a ver com a imagem das índias, com uma sexualidade liberta, ou um corpo que é exposto. O que ficou de resquício desse período é a ideia de um corpo que é roupa. A brasileira tem um uso muito específico do corpo, ao contrário da europeia e da americana, que usam a roupa para esconder e disfarçar, envelopar seu corpo. O código vestimentar é muito diferente num corpo de classe. A brasileira usa o corpo como símbolo de status. A roupa é meramente um acessório. Quanto melhor esse corpo está formatado, menos roupa precisará. Essa simbologia do culto ao corpo ser tão significativa no Brasil no sentido das mulheres brasileiras serem consideradas aquelas com os corpos mais bem esculpidos do mundo, é alguma coisa que sinaliza o investimento brutal nesse corpo como capital. É um investimento de tempo, dinheiro. Como em todo projeto dessa monta, está implícita uma série de sacrifícios e renúncias de tempo e dinheiro, ou seja, as qualidades estéticas que esse corpo apresenta para ser exposto, funcionam quase como um sistema de meritocracia.

Quanto mais formatado este corpo estiver, a sua recompensa a toda essa disciplina é expô-lo da melhor maneira possível. Isso é uma característica que define a cultura que vivemos, mas também está em consonância com valores que nos são contemporâneos. No Brasil, é como se isso fosse levado ao paroxismo, ao extremo. Que valores são esses? Em última análise, esses valores apontam para um fenômeno social mais amplo que é a moralização da beleza. É você sinalizar ou reconhecer numa cultura como a nossa, de corpolatria, que cada desvio estético, (na medida em que se cuidar passou a ser um dever, e não um direito), passa a ser criminalizado. Cada transgressão, gordura e sinal de envelhecimento que não são devidamente disfarçados, o sujeito passa a ser criminalizado e culpabilizado.

IHU On-Line – Por que a mulher pobre tem uma relação mais livre com seu corpo?

Joana de Vilhena Novaes - Esse é o tema da minha pesquisa de pós-doutorado na UERJ. Nela, comparo o discurso de mulheres de classe média-alta e os usos que elas fazem de seu corpo, com o discurso das mulheres de classes populares. Faço uma distinção, um estudo comparativo. Procuro compreender como, embora lançando mão das mesmas práticas corporais (as mulheres pobres também malham, também estão nas filas dos hospitais públicos para fazer cirurgia plástica de cunho estético, também fazem dieta e cirurgia bariátrica) elas têm um uso muito diferenciado e significativo. Nesse sentido, falo que elas têm uma relação mais liberta, prazerosa e lúdica, menos persecutória, do corpo. Isso não tem a ver com ter uma visão acrítica do corpo, caso contrário, elas não estariam malhando nas academias da favela e fazendo lipoaspiração.

Discursos diferentes

Se você perguntar às mulheres das classes mais abastadas porque elas malham e querem emagrecer, usarão um discurso sofisticado, mas individualista, dizendo que o fazem para elas mesmas. Esse discurso aponta para uma insatisfação com a imagem corporal em relação mais tensa com o espelho. Mas isso nunca é justificado como querer ser um objeto de desejo mais atraente. Pelo menos esse não é um discurso manifesto. No caso das mulheres das favelas, elas dizem claramente que essas intervenções no corpo são para “ficar gostosas”, porque querem capturar o olhar do marido, porque querem passar pelas quebradas da comunidade e serem chamadas de gostosas, ou querem “passar o rodo geral no baile funk”. Isso aponta para uma sexualidade que é vivida de uma maneira muito mais plena, porque não significa desconsiderar ou perceber que precisa emagrecer, por exemplo. Falo isso porque esse foi o mote que me fez ir a campo e investigar como essas mulheres usavam o próprio corpo.

Prisioneiras do corpo

Muitas vezes se observa nas classes populares, e isso não é uma prerrogativa só do Rio de Janeiro, que as mulheres acima do peso colocam short, piercing, usam top e não disfarçam seu corpo. Elas o expõem, apesar de toda camada de gordura que possa existir, ao contrário do discurso do que observamos em termos de códigos vestimentares de uma mulher de classe média alta. Esta, se estiver acima do peso, não irá se expor. Se tiver umas gordurinhas, usará uma bata mais solta, subirá um pouco a calça, ou deixará o biquíni de lado, preferindo o maiô. Essas mulheres podem até deixar de frequentar determinados pontos da praia, onde só vai gente sarada. A mulher pobre, não.

Não devemos, no entanto, cair na análise simplista ou equivocada de achar que as mulheres das comunidades carentes não se percebem como cheinhas, gordinhas e estão sempre safisteitas com o corpo que têm. Não, pelo contrário. Elas têm acesso à informação, leem revistas, veem a mesma novela que as mulheres de classe abastada assistem. O discurso ao culto ao corpo é democrático. A diferença é que elas não estão aprisionadas nesse corpo. Elas sabem que precisam perder peso, o que é uma dieta balanceada, ao contrário de todos os estudos clássicos sobre o corpo nas classes populares, que apontavam para uma população que estaria alienada do discurso médico que as faria comer e viver melhor. A mulher de classe baixa sabe o que deve comer para emagrecer. Conversando com essas mulheres, seja nos postos de saúde ou nas próprias comunidades, elas garantem saber o que é uma alimentação balanceada. Entretanto, esse tipo de comida custa muito caro. Queijo “cottage”, por exemplo, não está na cesta básica, dizem elas.

Corpo de classe

O corpo magro, esbelto, é um corpo de classe. Uma geleia diet comparada à geleia comum é muitíssimo mais cara. O dinheiro para alcançar um projeto dessa monta é brutal. É por isso que é preciso pesquisar, no imaginário social, as raízes históricas desse corpo e da relação com a comida. A disciplina e a privação são valores máximos nas classes médias e altas: você está louca para comer aquele brigadeiro, ou um bife à parmeggiana, mas controla e mantém o seu investimento em relação ao corpo. Nas classes populares, o que se observa bastante é que a questão da privação está associada à pobreza, e a gordura à prosperidade e fartura. Já ouvi de uma mulher da favela que não adianta ficar tomando só sopinha e comendo biscoito Cream Cracker, porque aí vão achar que a pessoa está na miséria.

IHU On-Line – Pode-se falar, ainda, em ditadura da beleza? Por quê? Como as modelos e o uso do photoshop nas revistas contribuem para isso? Por outro lado, a senhora diz que apesar de procurar fazer ginástica e se inscrever em hospitais públicos para cirurgias de redução de estômago, as mulheres das classes baixas não reverenciam os rígidos padrões estéticos nacionais, preferindo a exuberância de Ivete Sangalo ao corpo magro de Gisele Bündchen. O perfil de beleza entre as mulheres está mudando?

Joana de Vilhena Novaes - Ao longo da história, há variações estéticas. Evidentemente, tamanha tecnologia a serviço da formatação da imagem cria uma expectativa nas pessoas que é perigosa. Acho que, quanto mais a pessoa vai subindo na pirâmide social, mais almeja um corpo mais descarnado. Você precisa ter um corpo mais curvilíneo, e não estar tão atento ao photoshop. Falo muito na questão do corpo de classe porque o corpo sempre é de classe. Na Revolução Industrial ou no Renascimento, havia corpos que eram ferramenta, como nas classes populares. Não era um corpo voltado para o prazer, mas para o trabalho. Naquela época, os magros eram os pobres, que morriam de peste, de fome, e porque não tinham os aditivos e especiarias para conservar a comida. Gordos eram os membros do clero e da burguesia. Esse era um corpo para poucos. Se agora a obesidade é uma questão de saúde pública, com estatísticas assustadoras no sentido de apontar que as pessoas engordam exponencialmente, é claro que o ideal é um corpo emagrecido e que tenha acesso a uma nutricionista para fazer uma dieta balanceada, verificar percentual de gordura, com personal trainer a fim de formatá-lo devidamente. Some-se a isso recursos como as massagens, spas etc.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos.

segunda-feira, 8 de março de 2010

O feminismo que vem passa por aqui...



Lady Gaga é o que há de mais extemporâneo em nossos dias. Seu corpo e sua performance excêntrica predicam-na com tal adjetivo, pois por meio destes ela adere a uma relação singular com o agora; ao mesmo tempo impregnada de nossa época e estranha, excepcional. Ela é extemporânea porque as performances que realiza constituem um espaço que simultaneamente absorve as tendências do presente e instaura, nas bordas deste, as condições de possibilidade de novos imperativos estéticos. O corpo como suporte da arte e como suporte do tempo, como o que suporta as possibilidades da arte e encarna o tempo fraturando-o através da introdução de possiveis descontinuidades.

domingo, 7 de março de 2010

Entrevista: O desafio e a luta das mulheres, hoje.

“As mulheres querem ser reconhecidas, ser valorizadas, querem ter acesso a várias coisas. Elas não querem ser sobrecarregadas, não querem ser tão exigidas, não querem ser essa supermulher. Elas querem dignidade e espaço na sociedade”, destaca a socióloga Darli de Fátima, que trabalha na área de pesquisa e assessoria do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores (Cepat), em Curitiba, PR.

Darli fala dos movimentos de mulheres e dos movimentos feministas, suas diferenças e suas contribuições para a sociedade, além de fazer um balanço das lutas que as mulheres têm feito durante esses cem anos de ‘08 de março’

Confira os principais trechos da entrevista, realizada pelo Instituto Humanitas.


IHU On-Line – Fazendo um balanço das lutas das mulheres pelo reconhecimento de seus direitos e de sua dignidade, o que as mulheres têm para comemorar, reivindicar e lamentar neste dia 8 de março?

Darli Sampaio – São cem anos de lutas, de organização e instituição do 8 de março. São cem anos que estamos refletindo, chorando e reivindicando muito. Essa data já começa em cima de um fato triste, foi uma declaração em memória de mulheres que foram assassinadas por uma reivindicação em função do mundo de trabalho. Ou seja, já começa a partir de um fato lamentável. De lá para cá, as mulheres conquistaram muitas coisas, mas, na medida em que isso aconteceu, a mulher perdeu muitas coisas também. A divisão do trabalho continua injusta e ajudando a manter a situação de opressão contra as mulheres. No mercado de trabalho, a mulher continua ganhando menos do que o homem, mesmo que desempenhem as mesmas funções. Das grandes empresas mundiais, apenas 2% são dirigidas por mulheres.

Mais de seis milhões de mulheres trabalham em condições precárias, sem condições de direitos sociais, são mal remuneradas e tudo mais. Temos avanços, mas ainda há uma exigência maior com relação à atuação das mulheres no mercado de trabalho.

IHU On-Line – A entrada das mulheres no mercado de trabalho é interpretada como emancipação, libertação do lar, autonomia financeira, elevação da autoestima, porém, ao mesmo tempo, significou na prática a dupla jornada de trabalho, privação de um convívio maior com a família, desigualdade salarial etc. Já há um balanço sobre aspectos positivos e negativos relacionado ao tema da mulher e o mercado de trabalho?

Darli Sampaio – É positivo, porque houve a entrada da mulher no mercado de trabalho e, com isso, ela se tornou independente, responsável, chefe de família. E ela traz para dentro da empresa as preocupações de mulher, com filhos e com a família. A mulher deu características novas para as empresas, como intuição e o fato de estar antenada para várias tarefas ao mesmo tempo. Os homens não foram treinados para isso. São coisas que hoje o mercado de trabalho valoriza muito.

Ainda assim, a jornada é muito exaustiva, espera-se muito da mulher, e ela não ganha como os homens. Essa é uma tendência mundial, embora elas estejam mais qualificadas do que eles. Isso é uma dificuldade que a mulher está enfrentando. Do ponto de vista da sua contribuição, da sua independência, da sua autosustentação é muito bom. Tem muitas teóricas feministas que acham que a entrada da mulher no mercado de trabalho não foi tão positivo assim. Elas dizem que se trocou uma prisão por outra, e, na empresa, há ainda um controle sobre o seu corpo e seu comportamento.

IHU On-Line – O que representa para a sociedade a participação feminina em lideranças de movimentos sociais e trabalhistas?

Darli Sampaio – Isso é extremamente importante porque, dos movimentos sociais, nós somos maioria. Somos a metade da força de trabalho nos países desenvolvidos, e, nos movimentos sociais, somos mais da metade dos participantes. Nos movimentos sociais de base, na Economia Solidária, a grande força é formada por mulheres, alguns sindicatos já têm uma representação muito grande de mulheres que estão exercendo também cargos de direção. É a mulher que traz para dentro do movimento a discussão sobre gênero. É por conta disso que o próximo 1º de maio vai trazer a pauta da igualdade no mundo do trabalho.

IHU On-Line – Você se considera uma feminista. O que é ser feminista, hoje?

Darli Sampaio – Eu sou uma feminista em construção porque o tempo todo estou refletindo, não posso fechar essa questão. Feminismo já foi ligado a radicalismo pela luta por seus direitos. O feminismo não é o contrário de machismo. Ser feminista é trazer a questão de gênero, isso quer dizer que estamos comprometidas com questões de homens e mulheres, com reflexões e problemas da sociedade que atingem mulheres e homens. Tem muitos homens feministas também.

(...)

IHU On-Line – Qual a contribuição do movimento feminista e os seus limites para a sociedade contemporânea?

Darli Sampaio – O movimento feminista colocou a mulher no cenário. Nós somos a outra metade da população, somos as responsáveis por tarefas que são vitais para a produção e reprodução humana. O movimento feminista trouxe isso para a sociedade porque lutou por direitos importantes, como a inserção da mulher no mercado de trabalho, a denúncia da violência e a divisão sexual no trabalho etc. Isso deu visibilidade à mulher. Ainda falta dar visibilidade ao trabalho desempenhado pela mulher, tanto é que muitas vezes somos consideradas indivíduos de segunda categoria. O questionamento é permanente: a mulher está satisfeita no mundo do trabalho? Tem coisas para mudar? Muitas! A reflexão do aborto, embora seja polêmica, precisa também de reflexão.

IHU On-Line – Em sua opinião, o que a mulher deseja mais fortemente?

Darli Sampaio – Eu falo do ponto de vista do que eu quero, enquanto mulher, e do que eu percebo em outras mulheres. As mulheres querem ser reconhecidas, ser valorizadas, querem ter acesso a várias coisas. Elas não querem ser sobrecarregadas, não querem ser tão exigidas, não querem ser essa supermulher. Elas querem dignidade e espaço nessa sociedade.


sexta-feira, 5 de março de 2010

Avatar Pornô?



Desde seu nascedouro, em algum lugar entre o século XVIII e XIX, a pornografia esteve voluptuosamente conectada à tecnologia. A etimologia da palavra não deixa dúvidas. Em seu secular percurso histórico, dos antros das obscenidades e da clandestinidade do universo dos libertinos, hereges e de toda espécie de ser e ocupação de reputação duvidosa até a sua transformação fílmica em serviço de entretenimento pela cultura de massa do século XX, a pornografia acompanhou as inovações tecnológicas vis-à-vis, despertando tantas volúpias quanto indignações. Primeiro com os panfletos e livretos de contos e caricaturas impressas, depois à fotografia, o cinema e, por último, a internet.

O mais novo desdobramento desse processo, na esteira do sucesso do último filme do diretor James Cameron, Avatar, foi anunciado pela Hustler, conhecida produtora no ramo da fornicação mercantilizada. A promessa da Hustler é por em cena uma paródia pornô de Avatar, cujo título é This Ain’t Avatar XXX. É improvável que a Hustler disponha do aparato tecnológico utilizado e da habilidade técnica e cinematográfica requeridas, responsáveis pelo marco no cinema que o filme do James Cameron representa. Entretanto, suponhamos, por um instante, e por sincero interesse sociológico, que o diretor de Avatar cedesse os equipamentos de simulação 3D e auxiliasse a produção da versão pornô do povo Na’vi. Tal feito além de abrir novos horizontes de prazer, satisfação e de comportamentos sexuais, seria, seguramente, algo proveitoso ao pensamento. Ou como dizia o outrora etnólogo Levi-Strauss: “bom pra pensar”.

Pelo menos no cinema, a encenação de um sexo limpo, livre dos fluídos, dos odores e do roçar dos corpos não é uma novidade. Por exemplo, no filme O Demolidor, há uma cena na qual Sylvester Stallone e Sandra Bullock oferecem-nos a insípida e cômica idéia de um possível coito futurista mediado por capacetes de interface neural configurados para produzir, sem nenhuma pegação, as reações químicas responsáveis pela sensação de prazer através da simulação e projeção de uma relação sexual realizada por hologramas do casal. Veja aqui a cena mencionada.

Por enquanto, não convém adentrar em julgamentos e avaliações acerca da riqueza e/ou pobreza de relações sexuais mediada por avatares, corpos-softwares, hologramas e corpos sintéticos, etc. Assim evitamos cair num discurso alarmista e apressado, segundo o qual as novas tecnologias representam sempre uma ameaça à natureza, o que, no campo da sexualidade, corresponderia a uma ameaça ao corpo e ao desejo.

Na verdade, penso que, longe de subsumir o desejo ou o corpo, a tecnologia intensifica-nos mediante sua articulação em novas composições técnicas, relações e forças que mobilizam e produzem novos sentimentos, sensibilidades, possibilidades, etc., – pensemos nos artifícios da cirurgia plástica, do PhotoShop, nas próteses, nas inúmeras substâncias e suplementos químicos voltadas para o desempenho do corpo ou para o restabelecimento de uma situação de equilíbrio.

A confusão ocorre quando em vez de compreendermos o corpo como um processo ativo, aberto e maleável, segundo as condições e possibilidades históricas e culturais, o entendemos somente como uma materialidade físico-orgânica estanque e sagrada. As tecnologias de simulação longe de representar a extinção ou crise do corpo, elas significam a encarnação do corpo em novas possibilidades técnicas. Se for verdadeiro, como afirma Heidegger, que não existimos com a técnica, mas na técnica, então em vez da obsolescência e apagamento do corpo, como sugere alguns, temos em marcha, na verdade, um outro processo de corporificação, uma vez que, como afirma Merleau-Ponty: “o corpo é um conjunto de possibilidades continuamente realizáveis”.

Os Avatares, a introdução de tecnologias de simulação digital nas relações sexuais, realizariam todas as formas sonhadas de mutação, que, por suas características, livrar-nos-ia do peso do corpo, das marcas essencializadas da raça e do sexo; nem a idade, nem a saúde seriam mais obstáculos. Em vez da morte do corpo, creio, teríamos o exorcismo do corpo pela técnica; liberação do orgânico, da fraqueza dos órgãos, enfim, o exorcismo de tudo aquilo que convencionamos associar ao humano: o corpo, a finitude, a vulnerabilidade, as paixões, a morte, a vida entendida no seu sentido de vulnerabilidade e imperfeição. Avatar é uma nova possibilidade de corporificação em direção à emancipação do humano de seus últimos fundamentos teológicos e humanistas.

Retornando ao tema de origem do texto, creio a virtualização do sexo pela tecnologia Avatar seria muito proveitosa para a escola, por exemplo. Imaginemos a revolução que se abateria sobre as aporrinhadoras e pacatas aulas de educação sexual, que mais disciplinam, amedrontam e entediam, com suas ameaças em forma de cartazes, cartilhas e folders insossos do que educa para uma relação atraente, autônoma e amorosa com a sexualidade.

No horizonte próximo, uma nova configuração do corporal e do sexual já acenam. Em alguns anos à frente, talvez, as veias incorruptas pelas quais o prazer corre desembocará em outras fontes. O desejo, o prazer, o sexo passará por novas partes. Sua fruição delirante mediada por cabos, softwares, plugs; impulsionada por ondas, bytes, posições e técnicas sexuais para download e upgrades, orgasmos garantidos por gadgets. A digitalização do sexual seria como que uma espécie de transfusão e descorporificação do sexual, mas isto não quer dizer dessimbolização deste.

O agenciamento da sexualidade e do erotismo com as práticas relacionadas à tecnologia Avatar desestabilizaria por inteiro a organização genital da sexualidade, esta que é a matriz moderna demarcadora da polícia do sexo normal, natural, e, por conseqüência, do que é considerado desviante e perverso.

Vivemos em um mundo, como sentenciou Baudrillard, marcado pelo afundamento progressivo da realidade no hiperrealismo. Um mundo governado por modelos de reprodução minuciosa e alucinante do real – fotografia, publicidade, vídeos, games 3D, cibernética etc -, isto é, um mundo constituído por simulacros e simulação no qual a ênfase repousa muito mais na representação da coisa do que na própria coisa em si. A ascensão do simulacro é exatamente isto: o arrebatamento da coisa em si, das consciências e do real pela representação. Esta, a imagem de um objeto, é mais importante, mais desejada do que o real, o concreto, o objeto.

Portanto nem mais a sexualidade e o sexo escapam ao avanço dos simulacros. Eles estão embutidos nos próprios corpos – transexuais – por vias técnicas que manipulam sua materialidade ou por meio da manipulação de sua representação – cirurgias estéticas e corretivas no primeiro e vídeos, hologramas, corpos sintéticos, Avatares, no segundo. Os corpos podem ser, agora, nosso joguete de cordas, nossa alegoria.


Alyson Thiago F. Freire