sábado, 3 de abril de 2010

Universal e particular: o que fazer com as burcas?



Passo agora para alguns breves comentários acerca do debate sobre a proibição ou não proibição da burca, tema da reportagem expressa no último post.

Quando os “outros” adentram em nossas fronteiras eles trazem inscritos em seus corpos e gestos as marcas de suas terras e sociedades. Carregam-na, mesmo a contragosto, para dentro de nosso mundo, e a exposição crua das diferenças que adentraram chacoalham nossas pressuposições. Um problema está claramente posto: o que fazer com essas diferenças? Tratá-las com reconhecimento na medida em que estão em consonância com nossos valores e normas e com repressão na medida em que afrontam/diferem destes últimos? Então é isto: devemos alçar nossa sociedade e desenho normativo como a medida de todas as coisas? Uma resposta etnocêntrica não está à altura do problema, pois repousa na própria normatividade das sociedades ocidentais modernas uma pretensão à universalidade e cosmopolitismo.

Uma atitude etnocêntrica é uma resposta particularista, portanto que contradiz a própria normatividade e identidade moderna. Então o problema passa a ser outro: como reconhecer/respeitar as especificidades dos de “fora”, dos “estrangeiros”, sem que isto implique na desagregação de nossas pressuposições normativas – laicidade, universalidade, isonomia, etc.? Ou, como preservar os princípios normativos abstratos modernos – cidadania, igualdade – sem que isto signifique subsumir ou negligenciar desigualdades/diferenças concretas? O que está em tensão é evidente: o conflito entre universal e particular, como conciliá-los?

Questões complicadas como pode perceber o leitor. Notadamente, como compreendeu Cadu, em seu comentário à reportagem referente ao debate sobre a burca, a Bélgica, e a também a França acompanhada por outros países da Europa ocidental, optou por uma política da universalidade, baseada na igualdade de todos os seres humanos em torno de certos princípios gerais e universalmente válidos, e que somente reconhece/tolera/permite determinadas diferenças e práticas culturais na medida em que estas estão em harmonia com aqueles princípios universalmente válidos e estendidos a todos.

No entanto, mais do que constatar a tensão entre universal e particular, é preciso perguntar o que anima e quem reivindica o manejamento de princípios universalistas como elementos de justificação à proibição do uso da burca em espaços públicos. Republicanismo ou islamofobia? Defesa de ideais democráticos e emancipadores ou medida populista para abocanhar votos nos extensos setores xenófobos e direitistas dos países europeus? A meu ver, a fronteira entre um e outro não é tão clara e definida. Além do mais, na Europa, o tema das burcas ou hijabs goza de uma atratividade político-midiática bastante forte.

Essa atitude do governo belga em insistir na proibição do uso em espaços públicos da burca denota a seguinte postura em relação às diferenças: “somente os aceitamos se vocês se tornarem, no espaço público – no espaço da circulação e exposição das diferenças e também o espaço das decisões – os mais próximos e iguais possíveis de nós”. Ou seja, a assimilação/reconhecimento somente se dá em função da aceitação/submissão pelos “estrangeiros” dos valores universais reguladores, que são, na verdade, valores europeus. Fora da norma e das fronteiras européias, os “estrangeiros”, as “mulheres de burca” continuam sendo “outros”. Estes só se tornam “iguais”, humanos em igualdade de direitos e dignidade, no espaço sancionado pela norma européia, ou melhor, mediante sua submissão a esta.

Um outro ponto recorrente na discussão sobre as burcas é a necessidade da emancipação das mulheres mulçumanas. De fato, a meu ver, a burca é um instrumento de sujeição, de controle do corpo feminino, ainda que brinde identidade, reconhecimento, pertencimento e beleza para algumas. Há aquelas, mulçumanas, que vêem na burca simultaneamente um prêmio, uma prova de obediência e uma forma de proteção de sua honra e modéstia, blindada do desejo masculino. Mas há também mulheres mulçumanas que encaram sua obrigatoriedade como imposição masculina, restrição, controle e disciplinamento.

Entretanto, se de fato o que interessa e move esse debate é a emancipação das mulheres, por que não se ver a mesma energia e dedicação política por parte dos interessados para equalização salarial entre homens e mulheres, ou sobre os efeitos nocivos das políticas de família estigmatizantes das mulheres/mães pobres, ou o abuso da publicidade na representação do corpo feminino que o reduz a um mero objeto? Quem é mais emancipada uma mulher mulçumana que trabalha, estuda e sustenta uma família ou as francesas “bon chic” a bater perna pela Champs-Élysées?

Sob o manto republicano da universalidade e emancipação existe muito de unilateralismo e dominação velados. Negar o acesso ao espaço público por razões de vestimentas ou religiosas me parece mais anti-republicano do que o uso das burcas.

A meu ver, políticas de controle e proibição, tais quais as expressas na reportagem, não enfrentam a principal questão, pois não há aprendizado, diálogo, enriquecimento mútuo, trocas e produção de reciprocidades de sentidos culturais através da confrontação de idéias, percepções e hábitos distintos. O conflito intercultural, o lidar com a diferença que perturba e chacoalha nossas pressuposições – e as dos outros também - e que as fazem se mostrar como aquilo que de fato são, isto é, como pontos de vistas particulares e provisórios, é deixado inteiramente de lado, suprimido em nome da segurança e reprodução de um modelo integrador e assimilacionista ilusoriamente universalista.

A questão a se enfrentar é: uma vez que vivemos num mundo globalizado onde o contato com as diferenças é inevitável, como produzir sentidos emancipadores mútuos através do conflito/diálogo intercultural mediante o qual as identidades, ou melhor, as identificações, valores e práticas culturais possam ser tratadas como realidades abertas, construídas e re-construídas historicamente, segundo a experiência sócio-política dos sujeitos? Um diálogo/conflito intercultural que não dispense um horizonte de pretensões universalistas de direitos – à dignidade, à igualdade e à liberdade, por exemplo -, mas que o inscreva no interior do movimento das discussões em torno das práticas e identificações culturais.

Que se interpele as mulheres mulçumanas com as seguintes questões: “por que somente às mulheres é colocado a obrigatoriedade de cobrir quase por completo o corpo?” “Quem decidiu e instituiu essa prática? Homens e mulheres em discussão? Ou somente os homens?” “Qual é o poder de decisão e interferência das mulheres nos assuntos religiosos?”

A cultura não é uma negociação de sentidos, como pensa o antropólogo americano Clifford Geertz, operada a partir de um consenso sobre as interpretações, mas sim, como pensam Nietzsche, Foucault e Bourdieu, o produto tenso e mais ou menos duradouro de um processo de imposição de sentidos arbitrários e apropriação de significados obtidos, impostos e conservados graças à diferença de força e relações de hegemonia e dominação específicas.

A grande dificuldade desse possível diálogo intercultural reside na mediação institucional, como formatá-lo institucionalmente. De todo modo, creio ser mais proveitoso políticas que ensejem uma crítica de mão dupla na tentativa de proporcionar um maior distanciamento e estranhamento aos indivíduos em relação à sua própria cultura e sociedade, discutindo as relações de poder e de hegemonia constituintes das identificações e práticas em questão, inclusive dessas políticas e do próprio diálogo/conflito intercultural – a desigualdade de capitais culturais e econômicos, a linguagem, gênero, etc.. A meta dessas políticas deve ser sempre a produção de efeitos de hibridização e complexificação recíprocos e potencialmente “mais democráticos” para os envolvidos.

2 comentários:

  1. Excelente texto! Põem as questões corretas independente das posições assumidas.

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