Valor: A revista "The Economist" fez uma matéria de capa sobre o Brasil, dizendo que o futuro chegou para o país do futuro. O sr. compartilha desse otimismo?
Luiz Felipe de Alencastro: Até a oposição compartilha desse otimismo. Dentro e fora do país há um consenso favorável sobre a economia brasileira, sobretudo com a entrada da China no mercado mundial, com uma forte demanda por matérias-primas. O lado negativo é que o comércio externo fica parecido com o que era no século XIX. Há um risco nessa divisão internacional do trabalho que vai se criando, em que o Brasil vira exportador de matérias-primas novamente.
Valor: E a perspectiva política?
Alencastro: O que me assusta é a ideia de ter Michel Temer como vice-presidente. Ele é deputado há décadas e foi presidente da Câmara duas vezes. Controla a máquina do PMDB e o Congresso à perfeição. Vai compor chapa com uma candidata que nunca teve mandato e é novata no PT. O presidencialismo pressupõe um vice discreto, porque ele é eleito de carona, para trazer alianças e palanques. Aos trancos e barrancos, instaurou-se um sistema presidencialista que tem dado certo no Brasil. O fato de haver dois turnos, associado à integração do vice na chapa do presidente, deu estabilidade ao sistema. Foi assim com Fernando Henrique e Marco Maciel. Foi assim com Lula e José de Alencar. Dilma e Temer formam uma combinação inédita: uma candidata até então sem mandato associada a um político cheio de mandatos e dono do PMDB, que é o maior partido do Brasil, mas nunca elegeu um presidente e vai com sede ao pote. O PMDB pode estabelecer um vice-presidencialismo, com um papel de protagonista que seria descabido.
Valor: Dilma é considerada uma administradora eficiente, mas não tem uma carreira política como a de Lula. Isso pode comprometer seu governo?
Alencastro: Ela assumiu a Casa Civil num momento difícil. O governo e o país estavam em crise e, por muito tempo, não se falou nela, o que é um indício de grande eficácia. Num cargo exposto como esse, não ser notícia é um grande feito. Isso prova que não é ficção sua fama de boa administradora. Mas acho problemático ela não ter a experiência de um mandato eletivo.
Valor: Lula, quando eleito, só tinha passado pela Assembleia Constituinte.
Alencastro: Mas era o fundador de um importante partido político e um grande líder sindical. O lado conciliador de Lula vem daí, da experiência de conversar no botequim com os companheiros, negociar com o patronato, avaliar relações de força na fábrica e na política. Se ele errasse, dirigindo uma greve furada, a sanção não seria perder um mandato, mas ter no dia seguinte dezenas de trabalhadores no olho da rua. Sem contar as campanhas, as três que perdeu para presidente e uma para governador de São Paulo, em 1982. Dilma foi secretária estadual no Rio Grande do Sul, um Estado muito politizado, mas isso não equivale a um cargo eletivo.
Valor: Serra, o sr. conhece melhor.
Alencastro: Serra tem muita experiência e é um grande líder. Mas tem um problema sério. Vou formulá-lo de maneira abrupta: e se Serra for um blefe? Explico: ele é apresentado desde 1982, quando foi secretário de Planejamento em São Paulo, como o reformador do Brasil, o homem que vai racionalizar a economia e dar jeito no país. Quando Fernando Henrique ganhou, ele foi ministro do Planejamento, mas ficou fora da política econômica. Como se dizia, Serra era o candidato da Fiesp, da indústria, e Fernando Henrique, da Febraban, dos banqueiros. Serra foi parar na Saúde e até hoje não quer ser associado àquela política econômica, de que era crítico acerbo.
Valor: A classe média também pode gerar instabilidade, ao sentir que perde privilégios?
Alencastro: Isso já está acontecendo. É o que alimenta a agressividade anti-Lula de certos jornais e revistas, que retratam a perplexidade de uma camada social insegura: os pobres estão satisfeitos e os ricaços também, mas a velha classe média não acha graça nenhuma. Ter doméstica com direito trabalhista, pobres e remediados comprando carro e atrapalhando o trânsito, não ter faculdade pública garantida para os filhos matriculados em escola particular. Tudo isso é resultado da mobilidade social, que provoca incompreensão e ressentimento numa parte da classe média. Daí o furor contra o ProUni, as cotas na universidade, o Bolsa Família. Leio a imprensa brasileira pela internet e às vezes fico pasmo com os comentários dos leitores, a agressividade e o preconceito social explícitos. O discurso de gente como o senador Demóstenes Torres no DEM [contra o sistema de cotas raciais nas universidades públicas] indica uma guinada à direita da direita parecida com a dos republicanos nos Estados Unidos. Lá, esse extremismo empolgou o partido inteiro e pode desestabilizar o país. A falta de perspectiva da oposição cria um vácuo para o radicalismo.
Valor: A oposição está desarticulada?
Alencastro: Desarticulada e sem discurso político coerente, e isso é ruim para o Brasil. Como ela vai se reorganizar? E vamos extrapolar: se perder São Paulo e o Rio Grande do Sul, acaba como força política nacional. Um desequilíbrio tamanho entre os partidos é problemático. Novamente, o exemplo americano: fico impressionado não só com o radicalismo, mas com a histeria. Obama é chamado de Anticristo... O Brasil pode enveredar por aí. Brasil e Estados Unidos são países conservadores e precisam ter um partido conservador à altura. A desarticulação da direita não é bom sinal. É preciso uma alternativa conservadora que mantenha a insatisfação no jogo eleitoral. Foi isso que o PT fez na esquerda. Ainda no tempo da ditadura, recolheu o sindicalismo apartidário, a franja próxima da luta armada, que tinha sido desmantelada, e a militância cristã, que não tinha onde se expressar eleitoralmente. Isso fez a força do PT.
Valor: A tendência, então, é Serra liderar uma direita radicalizada?
Alencastro: O problema é que, a princípio, Serra não é o candidato que a direita gostaria de ter. Ele é um democrata com trânsito numa parte da esquerda. Também é meio estatizante, adepto de uma política tarifária protecionista e por aí vai. Não é a mesma direita de Demóstenes Torres, Ronaldo Caiado ou mesmo Geraldo Alckmin. Por quê? Porque Serra teve a experiência da perseguição política, da ditadura, do exílio. Companheiros dele foram mortos, outros torturados. Isso até o aproxima de Dilma: os dois principais candidatos à presidência correram o risco de ser assassinados pela direita mais radical. Serra ainda escapou de Pinochet quando estava no Chile. De Paris, acompanhei com atenção sua volta ao Brasil em 1977, antes da anistia. Eduardo Kugelmas [sociólogo e cientista político, morto em 2006], quando soube que Serra tinha voltado sem ser preso, me disse: "Todo mundo pode voltar agora. Serra é um elefante de piranha. Se ele passou, todo mundo pode voltar". Hoje, o que torna sua candidatura difícil é não ter um discurso mais abrangente, além do anti-PT, para atrair outros setores.
Valor: A aliança possível para Serra seria talvez a direita radical, com que não se identifica. E sua adversária é uma esquerda que se aproximou das ideias que ele defendia...
Alencastro: Serra está confrontado a um impasse. Não pode elogiar Fernando Henrique e não pode atacar Lula. Que candidato ele pode ser? Qual é seu terreno? Ele pode ser um blefe nesse sentido. Na campanha, vai ter de prometer continuidade para os programas do PT. Quando Sérgio Guerra disse que o PSDB faria tudo diferente, foi um desastre. Disse que ia mexer no câmbio e nos juros. Falou disparates e levou um cala-boca do partido.
Valor: Isso pode fazer com que a campanha se torne virulenta?
Alencastro: Na blogosfera, já começou. É terrível, a começar pelo episódio da ficha policial falsa de Dilma. É um sinal do que está por vir. Vai ser um vale-tudo monumental. Embora o impacto disso seja limitado no grande eleitorado, é forte entre os chamados "formadores de opinião". Sobretudo, cria um clima de tensão e de irresponsabilidade na campanha presidencial.
Valor: A presidente da Associação Nacionais de Jornais, Judith Brito, disse que a fraqueza da oposição leva a imprensa a agir como partido. O que significa a imprensa se comportar como partido político?
Alencastro: Normalmente, a imprensa defende a Constituição, reformas políticas, ideias. Não há nada errado, por exemplo, em apoiar candidatos. O "New York Times" apoiou Obama, mas tem um trabalho jornalístico sério e equilibrado. Esse é o papel da imprensa, o que é diferente de querer substituir partidos políticos. Fiquei perplexo com o texto de uma coluna regular num grande jornal carioca que continha uma proposta partidária para o PSDB. O papel do jornalista não é redigir programas partidários.
Valor: O PT sofreu mutações desde que Lula foi eleito.
Alencastro: O aparelho, que se mexia sozinho, foi decapitado com a derrocada de [Luiz] Gushiken, [Antonio] Palocci e [José] Dirceu. Lula tomou conta e o partido perdeu sua independência. Tarso Genro disse que a candidatura Dilma cresceu no vazio que se criou dentro PT, e tem razão. O próprio Tarso, em 1997, foi pré-candidato contra Lula. Imagine se hoje isso seria possível! Existe um problema de sobrevivência para o PT pós-Lula. O movimento mais forte do Brasil no século XX, o varguismo, esgotou-se quando Lula foi para o segundo turno em 1989, batendo Brizola e puxando o eleitorado trabalhista. O PT também pode se desarticular porque perdeu o debate interno. Em 2005, com o escândalo do mensalão, Raul Pont propôs uma refundação do partido e enfrentou [Ricardo] Berzoini nas eleições internas. Perdeu, depois sumiu. Ninguém mais ouve falar nele, nem se sabe o que ele pensa. A ausência de debate interno pode transformar o PT num partido amorfo, corroído pelo empreguismo e o clientelismo político.
Valor: A política brasileira caminha para a fragmentação?
Alencastro: O que está acontecendo é a fagocitose das estratégias partidárias nacionais pela política estadual. É um efeito das reeleições nos Estados e nos municípios. Isso também coloca outros problemas. Seria necessário que os tribunais de contas estaduais e municipais fossem mais fortes, mais independentes - como o Tribunal de Contas da União - para escapar ao sobrepeso de um governador ou prefeito que é reeleito. As contas do Maluf, por exemplo, sempre foram aprovadas, e hoje ele está na lista vermelha da Interpol. Isso deveria levar a um questionamento maior no Brasil. Primeiro, nos partidos. Eles têm comissões de ética, mas abrigam eleitos acusados de diversos crimes. Depois, na imprensa, que deveria questionar tribunais de contas que aprovam o exercício de governadores e prefeitos delinquentes. Os editores deveriam pautar repórteres para recuperar os documentos, interrogar os membros desses tribunais. Como pode alguém ser perseguido pela Interpol, podendo ser preso em 181 países por causa disso, mas passar pelas regras da gestão pública brasileira?
Valor: A política externa brasileira tem recebido elogios no exterior, mas críticas pesadas no país. A que o sr. atribuiria essa disparidade?
Alencastro: Pela primeira vez, desde 1850, quando a marinha de guerra inglesa bloqueava a baía de Guanabara por causa do tráfico negreiro, a diplomacia brasileira entrou na agenda da campanha eleitoral nacional. Acho uma coisa muito boa. Durante a ditadura, política externa era um assunto secundário. Depois, com a internet, os jornais desistiram de ter sucursais e correspondentes no exterior. Ora, a política externa virou um assunto complexo, mas o Brasil não tem especialistas suficientes nos jornais ou nas universidades. A imprensa não segue política internacional de maneira adequada. Exige-se mais conhecimento específico dos jornalistas esportivos que de quem cobre o setor internacional. Há um quarteto de embaixadores aposentados que estão sempre na televisão, batendo em Celso Amorim e Lula. Repetem que a política externa é um desastre. Desastre? Os jornais americanos e europeus discordam. Nunca vi o Brasil com tanto prestígio. É até desproporcionado, dado o peso ínfimo do país no comércio internacional. Ao contrário da Índia e da China, potências atômicas com peso comercial enorme. Em maio, Lula vai ao Irã e está sendo criticado no Brasil. Já a "Economist" diz que é bom, porque abre novos canais de comunicação entre Estados Unidos e Irã. Nos últimos dias, a diplomacia brasileira usou com habilidade as regras da OMC e as manobras políticas para rebater o protecionismo americano na questão do comércio do algodão. Tenho certeza de que esse assunto, que começou em 2002 e ainda não terminou, ficará como um marco na história diplomática.
Por Diego Viana, para o Valor, de Paris09/04/2010.
Leia aqui a entrevista completa.
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