segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

O que é isso companheiro? Lula, democracia e a questão do aborto




O III Programa Nacional de Direitos Humanos, divulgado há poucas semanas pelo governo, para além das polêmicas já esperadas, é o resultado dos esforços e do exercício democrático dos movimentos sociais, ONG’s, grupos e agentes políticos envolvidos, que, nos últimos anos, intensificaram o debate, organizaram conferências, elaboraram propostas, diretrizes, linhas de orientação político-programática com o objetivo de fortalecer e consolidar avanços democráticos. Nunca no Brasil, a vitalidade política dos DH esteve tão em evidência e firme, como nas últimas semanas. A própria reação conservadora ao PNDH III - da igreja católica aos proprietários dos meios de comunicação, passando pelos militares e o agronegócio - resulta em um dado a mais para o argumento acima, e, notadamente, é a prova do caráter progressista e da coragem do programa e seus elaboradores. Portanto, antes de qualquer coisa, há de se reconhecer que o PNDH III possui de saída um mérito indispensável à democracia; a agitação das inteligências, da crítica, do debate e a coragem de interpelar a sociedade.

Entretanto, a hesitação do presidente Lula, com respeito a descriminalização do aborto, expresso na fala contemporizadora do ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos Paulo Vannuchi, significa um pé no freio no processo de amadurecimento e aperfeiçoamento de uma esfera pública, regida por uma moralidade laica e republicana, que o PNDH III sugere representar. Obviamente, o recuo do presidente não significa a paralisação da luta pela despenalização do aborto, esta continuará. Entretanto, tal gesto possui efeitos perversos, de represamento daquele processo de aperfeiçoamento democrático, ao manter, sob o véu da norma, um dogma, sobretudo religioso e permeado de preconceitos, institucionalizado.

Apesar de concordar com a afirmação realizada em 2007, pelo ministro da saúde José Gomes Temporão, de que o aborto é uma questão de saúde pública, e sobre a necessidade, como defendem alguns sociólogos, antropólogos e militantes, de deslocar o debate sobre o aborto do campo moral para o campo da saúde pública, dos DH, do direito à autonomia reprodutiva das mulheres, etc. Porém, convém precisar um pouco as coisas no tocante ao campo da moral. A discussão sobre a descriminalização do aborto deve sim, a meu ver, está no campo da moral, não acerca da veracidade e justeza das interpretações de morais particulares, religiosas, mas antes a propósito da constituição de uma moral pública, ou melhor, de uma moralidade pública que funcione como balizador normativo dos conflitos e da pluralidade de crenças. A meu ver, a atitude do governo em relação à questão do aborto, embora não jogue tudo por água abaixo, dificulta a instituição de uma moralidade pública e de um espaço público assentados em um paradigma tenazmente progressista.

Se, por um lado, o Estado não deve se confundir com religião, isto é, deve assegurar seu caráter laico, por outro, todavia, isto não quer dizer que ele deva ser neutro em relações a valores morais, crenças, princípios de justiça, visões de mundo. Pelo contrário, o Estado, por meio de suas instituições e normas, deve fomentar valores que assegurem as condições de igualdade e liberdade para a autodeterminação individual das decisões e que auxiliem no desenvolvimento das faculdades que possibilitam e dão corpo as escolhas individuais e coletivas. Tal tarefa implica num combate tanto no mundo das relações sociais quanto no mundo da norma e das instituições. Ou seja, é necessário, sobretudo, através de uma normatividade ligada ao princípio de dignidade e à concepção de universalização dos direitos, da percepção de todos os indivíduos como iguais, contestar e interpelar a sociedade e seus segmentos acerca do caráter democrático de suas crenças e interpretações do mundo, sob, obviamente, a garantia da liberdade, dentro dos devidos limites, de exercício e manifestação dessas.

O primeiro passo para essa interpelação é desinstitucionalizar as práticas discriminatórias e de desprivilegio contra grupos vulneráveis, expurgando das leis os valores, as representações sociais e as crenças que sustentam a agressão à liberdade, à equidade, ao reconhecimento e à dignidade desses grupos. Os obstáculos à democracia, à tolerância e à solidariedade arraigados nas relações sociais sob a forma de crenças, valores morais, preconceitos culturais e representações sociais depreciadoras, não podem de forma alguma encontrar abrigo, ainda que veladamente, nas leis, principalmente, no código penal.

A criminalização do aborto é um exemplo cristalino de como no Brasil tal desinstitucionalização ainda é incipiente. Além do mais, tal fato indica, creio, a pobreza e a estreiteza da democracia no Brasil, na medida em que a insistência absurda na criminalização do aborto significa a manutenção, sustentada pelo Estado, de uma forma moral e legal de privação à direitos: como o direito à integridade física e emocional, a uma vida digna e o direito à assistência. Manutenção de uma forma legitimada de sofrimento e de não-reconhecimento que danifica e ameaça a saúde das mulheres, aumenta as taxas de abandono de bebês e de mortalidade materna, sobretudo nos setores mais pobres, e impede às mulheres o direito de exercer à autodeterminação sobre seus corpos e suas gestações. Desse modo, por consequência, percebe-se o quão distante estamos de uma democracia qualitativamente rica e progressista.

A preponderância do catolicismo no espírito da população não pode ser utilizada como um embargo para a não-liberalização do aborto, ou a justificação da condescendência do Estado. Na capital mexicana – Cidade do México -, cidade composta esmagadoramente por católicos, desde abril de 2007, e com a devida ratificação da Suprema Corte daquele país, vigora a descriminalização do aborto com devida rede de serviços de suporte.

O recuo de Lula esbate, suaviza uma preciosa e provável conseqüência do PNDH III, a saber: a qualificação e o enriquecimento político e democrático da sociedade e da chamada opinião pública brasileira. Conjuntamente com as outras diretrizes do PNDH III, a despenalização do aborto significaria um novo salto em termos de maturidade política e democrática de nossa sociedade; um grande e largo passo em direção a um novo ethos, graças ao qual, talvez, estaríamos mais próximos do entendimento acerca da urgência de eliminar todas as formas de subordinação e da necessidade do tratar com equidade indivíduos e grupos vulneráveis.

A luta e o debate político acerca de formas normativas capazes de atender as demandas de direitos – direitos sexuais, reprodutivos, por exemplo – e assegurar o devido reconhecimento e proteção a determinados grupos e práticas – minorias étnicas, gênero, homossexualidade, etc. – estão em um contínuo processo de acirramento em boa parte das sociedades ditas avançadas. O PNDH III é a materialização desse processo de acirramento no Brasil. E, como qualquer documento relativo aos Direitos Humanos, ele é mais que o empenhamento político daqueles cujas vidas são - sejam pelos corpos que habitam, pelos desejos que carregam ou pelas peles que sustentam - marcadas pelas feridas do desrespeito, do não-reconhecimento e da deslegitimação moral. Na verdade, é antes o testemunho irrefutável de nossa violência e injustiça que, muitas vezes, ocultamos de nós mesmos. A violência, a injustiça e a posterior obstinação e coragem política das vítimas em enfrentá-las decisamente para seu impedimento futuro são a parteira de todo documento relativo aos Direitos Humanos.

Alyson Thiago F. Freire

Links:

Sobre o recuo do governo na questão do aborto e a revisão desse ponto no PNDH III

clique aqui

Algumas informações estatísticas sobre o aborto:

http://www.womenonwaves.org

PNDH III

http://portal.mj.gov.br/sedh/pndh3/pndh3.pdf

3 comentários:

  1. Há ainda muita água por rolar debaixo dessa ponte. Em ano eleitoral, convém prudência e saber adiar as coisas mais polêmicas. Talvez isso explique a atitude do governo. No mais, o texto é interessante, principalmente no sentido de diganosticar a qualidade de nossa democracia e a relação desta última com a descriminalização do aborto. Parábéns!

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  2. Caro Fernando,

    Obrigado pelos comentários. Este impasse do PNDH III ainda não teve um desfecho, como vc mesmo colocou; "há ainda muita água por rolar". Entretanto, mesmo sob a aparência de uma queda de braço entre governo e igreja católica, creio que interessa notar elementos mais vigorosos no debate sobre a descriminalização do aborto, os quais, penso, dizem respeito à coisas maiores e mais importantes do que guerrinhas particulares. Abraços.

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  3. Parabéns pelo texto. Concordo contigo.
    Há muita luta para nos libertarmos da ideologia religiosa repressiva e conservadora, tanto católica quanto evangélica.
    A luta continua!

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