quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Tiger Woods ou a intimidade como espetáculo




Num tempo banhado pela obsessão pela visibilidade, pela exposição e mercantilização da intimidade, a antiga máxima burguesa, segunda a qual certas coisas não se dizem, não se mostram e não se fazem em público, já pertence a um passado cuja distância e o desgaste no tempo já o vão tingindo com cores idílicas. A cobertura sensacionalista conferida aos recentes “escândalos sexuais”, envolvendo o golfista Tiger Woods é mais uma pá de cal nesse passado, que, aos excitados olhos contemporâneos, já não goza de nenhuma pregnância. A metáfora da liquidez, que desde Marx é utilizada para descrever a sociedade de mercado, e que atualmente é elevada a categoria central na sociologia de Bauman, é mais do que nunca a força irresistível, a torrente que move e remove de cima a baixo nossa época.

Se não bastasse a proliferação das manchetes, reportagens, fofocas, explorando as aventuras extraconjugais do antes bom moço Tiger Woods, na última sexta-feira, 19/10, Tiger Woods concedeu uma entrevista coletiva com ares de expiação pública, cujo intuito era, perante milhões de pessoas, confessar e se desculpar pelo seu comportamento promiscuo.

O intrigante a se pensar, nesse caso, consiste em observar como a trivialidade, revelada como imagens capturadas da vida íntima de famosos ou anônimos, e transmitidas pelos mass media, parece constituir, cada vez mais, o elemento par excellence que nos liga ao mundo. Há nisso algo de muito grave. A condição de trivialidade disfarça uma relação tenebrosa com o outro, com as nossas ações e posicionamentos em relação ao outro. Ela, a banalidade, faz com que a violência e a crueldade presentes numa situação contingente, como a entrevista coletiva de Tiger Woods, sejam enevoadas, pouco perceptíveis. Eis aí sua função, a aparência de banalidade presta precisamente para a ocultação da violência e da crueldade, e, nesse caso específico, subsumindo-as para o consumo como “mais um escândalo de uma celebridade”, como uma notícia, um enredo, isto é, como banalidade.

O banal é aquilo que se dá a aparecer como tal, ou seja, aquilo que, por sua repetição e trivialidade, é desprovido de qualquer profundidade e singularidade. A banalidade é marcada por relações automáticas, irrefletidas; destituídas de pertinência crítica, moral, de julgamento, portanto, marcadas pelo supérfluo. O que com freqüência se esquece é que as aparências na medida em que revelam um lado, ocultam outro. A banalidade consiste, de fato, nessa operação de aparição/ocultamento.

Mas que violência é esta que a banalidade oculta no caso Tiger Woods? Ela oculta um jogo vinculante entre verdade e confissão. Um jogo que vincula o sujeito à obrigação de confessar a verdade de seus atos sexuais enquanto conteúdos privilegiados de acesso à identidade concernente ao indivíduo. Temos claramente no ritual público a que foi submetido Tiger Woods a presença de uma velha tecnologia de poder, a prática confessional, a qual Foucault descreveu e examinou, com brilhante originalidade, em sua obra.

O interessante dessa tecnologia de poder, como explica-nos Foucault, é justamente sua relação com os segredos em torno do desejo sexual. Desenvolve-se uma espécie de jogo que converte a sexualidade como a “chave que permite analisar e constituir individualidade” e os segredos – as enunciações – numa matéria inteligível por meio da qual se pode extrair e revelar a verdade da identidade do sujeito confidente. De início, nos séculos XV, XVI e XVII, a confissão estava restritas aos lugares institucionais tais como as salas de aula, os seminários, tribunais da inquisição e confessionários. É a partir do final do século XVIII que a discursividade do desejo expande-se a outros âmbitos do tecido social; nos espaços e nas práticas relativas ao judiciário, à medicina, à pedagogia, às relações familiares e amorosas, enfim, expande-se pelo cotidiano.

A confissão como tecnologia de poder é parte fundamental num processo de colonização da vida interior e da intimidade, que hoje tem nos meios de comunicação um lugar privilegiado do qual retira uma eficácia e extensão sem precedentes. Portanto, a entrevista/confissão do famoso golfista, não me parece, seguramente, que seja fruto de uma exigência moral do mercado ou da opinião pública para a readmissão e perdão daqueles que se portaram inadequadamente. E também, por mais que ela tem sido motivada pela pressão dos patrocinadores e agentes do atleta na tentativa de atenuar os efeitos sobre as arrecadações e dividendos, isto não explica o essencial.

No mercado das aparências em que se transformou, em parte, o espaço público contemporâneo, o espetáculo da intimidade, sua banalização, leva-nos a não ponderar sobre o que estamos fazendo com os outros, ou seja, a incapacidade de pensar em relação ao ponto de vista do outro ou de sua situação. Aceitamos participar do sofrimento e da humilhação do outro, fechando-nos na banalidade da situação sem compreender o que, de fato, estamos fazendo. Tal conduta pode ser estendida a uma série de práticas sociais, como as músicas que depreciam o feminino, por exemplo.

A desculpa da imprensa e dos empresários é que Tiger Woods é um espelho para os jovens, um “exemplo para juventude”, por isto a retratação pública era um dever moral do golfista perante seus fãs e à opinião pública. Ora, mas é o mercado com as devidas ferramentas de exposição multimídia, e com fins comerciais, que o transformou em “exemplo para juventude”. É o mercado, e suas políticas de marketing, que faz com que certas pessoas sejam exibidas como marcas, ou melhor, vendidas no mercado das aparências como uma figura de virtudes, um exemplo a ser seguido, um modelo a ser imitado, signo de sucesso e realização.

A colonização e comoditização da vida íntima convertem-se, cada vez mais, em uma espantosa banalidade da vida diária, que leva-nos à inconsciência da mediocridade e da insensibilidade características da época em que vivemos. Exemplos do gozo irrefletido com o sofrimento e com humilhação alheia não faltam. Os próprios nomes das pessoas – Eloá, Geisy e Tiger Woods – são precedidos do termo policialesco “caso, reforçando ainda mais a síntese dramática, ficcional e estetizada de nossa realidade. O banal tornou-se a ligadura de nossa relação com o mundo e com o outro. Mas sua espetacularização não é mera reprodução de imagens. Lembremos Guy Debord: “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada pelas imagens”.


Alyson Thiago F. Freire

Um comentário:

  1. De fato, em uma época marcada pelas falsas polêmicas, presenteísmo, pela velocidade e a insegurança, a vida pode ser, repito pode ser, tão pobre quanto os mais pequenos dos dias. Ainda assim, não custa lembrar, são as escolhas e posicionamentos
    que fazemos dentro da vida que contribuem para o nível e tipo de sentido da nossa existência.

    O problema está, como vc bem explicitou, na banalidade que atrofia a reflexão e o pensamento sem os quais toda escolha e posicionamento é um mero decalque.

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