terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

“O PT quer impedir que música que fala do Bolsa-Família seja cantada no carnaval”




Nesses últimos dias de carnaval, recebi um curioso email, cujo título era o seguinte: “O PT quer impedir que música que fala do Bolsa-Família seja cantada no carnaval”. No email, o que lemos são acusações de censura e de cerceamento da liberdade de expressão endereçadas ao PT. O alvo da suposta censura do PT seria uma certa “marchinha crítica” aos efeitos perniciosos do Bolso Família e do Fome Zero. A música de autoria de Vasco Vasconcelos seria tocada no carnaval de Recife em comemoração ao 31º aniversário do bloco Siri na Lata. Eis alguns trechos da marchinha:

“Chega de trabalho, basta de tanto ‘lero-lero’, não vou mais encher minhas mãos de calo, vou viver da bolsa do ‘Fome Zero’. Minha mulher está muito feliz, já pediu dispensa do trabalho. Não quer mais ser uma faxineira pra viver dessa bolsa brasileira. Por isso, eu canto ‘Obrigado Presidente!’ Por o senhor ter estendido a mão, distribuindo esmola via cartão, retribuído com a sua reeleição. Este é o país que vai pra frente com essa massa ociosa e contente, vivendo na ociosidade, ainda diz que isso é brasilidade.”.

Pois bem, como o perspicaz leitor já deve ter percebido, o que temos, tanto na letra da “marchinha”, quanto no alarde do email, são clichês que por si só já evidenciam a indisfarçável origem social e o (des)gosto ideológico. As críticas, ou melhor, as ladainhas da direita e da classe média a propósito do Bolsa-Família e congêneres, além da insuportável repetição, revelam, cada vez mais, não só o já batido preconceito de classe, mas um preocupante, estreito e ocioso espaço neuronal. É sempre a mesma história: comodismo, vagabundagem, populismo, clientelismo, esmola, compra de votos, etc. E as reações contra as argumentações contrárias às “críticas“ da direita e da classe média possuem, igualmente, a mesma e incansável nota: censura, cerceamento da liberdade de expressão, autoritarismo, etc. A esse nível quase não vale a pena o esforço de escrever e rechaçar tais disparates. Entretanto, um certo gosto pelo divertimento fácil e uma espécie de dever moral leva-nos para tal sacrifício.

Pouco adianta apresentar os efeitos benéficos, as estatísticas positivas, tais como a redução das taxas de desnutrição e mortalidade infantil, as aprovações e elogios internacionais ao Bolsa-Família e ao Fome Zero, pois a intolerância dos setores mais à direita da classe média não consiste em convicções intelectuais, mas em convicções morais, reativas. São, de fato, movidas por ressentimento, pelo gosto pela inferiorização dos outros e por tudo aquilo que de alguma maneira assegure aos seus próprios olhos um sentimento de poder e distinção social, intelectual, moral, em relação às populações pobres do país.

Na cabeça de alguns, certas classes, socialmente desvalorizadas, não podem exigir ou barganhar qualquer coisa, isto é, elas não gozam de reconhecimento moral nem legitimidade intelectual pra tal. Em outras palavras, no (falta) entendimento da direita e da classe média, é inadmissível, um absurdo, uma inversão de valores, que os pobres ponderem, negociem e valorizem suas energias produtivas, sua força de trabalho ou que almejem bens e serviços tidos como importantes e valiosos. O correto é que eles aceitem servilmente todas as condições que lhes forem postas. Afinal, quando se contrata um deles para algum serviço estar-se-ia, na verdade, prestando-lhes um favor, uma ajudinha a esses miseráveis ingratos. Recusar ser faxineira? “Que absurdo! Olha o comodismo, a preguiça! Eles não aceitam mais cortar a grama ao meio-dia por trinta reais! Culpa do governo!”.

A classe média não aceita a atitude dos trabalhadores pobres de poder elevar o semblante até um patamar de igualdade, de olhar, com dignidade, a todos segundo um plano horizontal. Atitude esta possibilitada graças à eficácia das políticas de redistribuição, como o Bolsa-Família, e de reconhecimento e inclusão, como as políticas de cotas.

Quando as classes socialmente desvalorizadas acumulam um certo capital social, graças a garantia de uma renda extra e por ter acesso à espaços e bens e recursos socialmente valorizados, e, por consequência, passam a agregar elementos outrora inimagináveis, isto desestabiliza a percepção hierárquica e o julgamento das classes sobre si mesmas e sobre as outras. Os pobres não são mais vistos, nem enxergam a si mesmos, objetivamente, como “sub-gente”, destinada a servir à classe média e a aceitar as remunerações pífias e todo tipo de condição e atividade subalterna. As disparidades objetivas que organizam o campo das diferenças, as disposições para subalternidade e as relações de hegemonia são abaladas. A única tática que resta, como exprime a marchinha, é a deslegitimação moral: “massa ociosa e contente”.

É muito curioso as valorações oportunistas acerca das relações entre o Estado e as classes sociais. Dinheiro do Estado para pobre é esmola, incentivo à preguiça, conquista de votos, etc. E quando o dinheiro do Estado é destinado para facilitar financiamentos, crédito, limitar as deduções fiscais sobre as atividades da classe média, ele é o que?

A reserva e a garantia de uma renda básica asseguram a possibilidade do manejamento reflexivo de elementos que, para perspectiva preconceituosa da classe média e da direita, são tidos como “estranho” e ilegítimo aos pobres. Como por exemplo, agregar como parte da negociação da força de trabalho elementos pessoais, como satisfação, prazer, tempo, condições de trabalho, valor da remuneração, etc. A conseqüência da ponderação desses aspectos, e outros mais - tais como, qualidade de vida, participação e a possibilidade de aquisição de bens de consumo - como elementos relevantes pelos segmentos mais pobres economicamente é o que incomoda. Ou seja, aquilo que possibilita um enxerga-se como igual, como sujeito de direitos, desestabilizando o que sustenta a diferenciação e o antagonismo sobre o quais se erguem os preconceitos e os estigmas.

O Bolsa-Família não produz comodismo, produz, entre outras coisas, uma maior valorização da força do trabalho, afinal, quando não se está desesperado por sobreviver, não se vende a força de trabalho por tão pouco ou por qualquer coisa. Produz condições mínimas para alargar o horizonte de expectativas para além da sobrevivência própria e dos familiares, e assim, poder tanto enfrentar os efeitos da degradação social quanto pressionar e exigir direitos sociais, medidas de proteção e acesso à serviços básicos e avançados e também condições de auxílio para consumir bens, etc. Desse modo, o destino que aos trabalhadores pobres era impingido de contentar-se em ser, segunda a expressão de Hannah Arendt, um Animal Laborans, ou seja, regidos pela total indistinção entre o ritmo de trabalho e o ritmo da sobrevivência biológica, é posto em xeque.

No que concerne a atitude do PT, em tentar vedar a execução da dita marchinha, apóio-a irrestritamente. Afinal de contas, trata-se de uma visível forma de manifestação de preconceito e depreciação gratuita. Assim como é imperativo coibir as manifestações de preconceito étnico, racial, de gênero, sexualidade, etc., por que se adotaria tratamento distinto nas expressões de preconceito de classe? Todas estas exprimem o mesmo e horrendo sentimento.

Alyson Thiago F. Freire

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