Nas últimas semanas, uma pequena igreja da Florida, nos Estados Unidos, tem atraído alguma atenção do mundo. Como o leitor atento já inferiu, trata-se da campanha, organizada pelo pastor Terry Jones, de promover o Dia Internacional da queima do Alcorão. Muitas vozes, em protesto e condenação, se levantaram contra a esse gesto de tola extravagância e desejoso de atenção e visibilidade. Apesar da aparente rejeição dos norte-americanos, esse tipo sinistro de campanha e provocação infantil exprime algo que todos já sabem, mas que não custa lembrar e reforçar; o fundamentalismo é uma matéria que os EUA conhece e pratica muito bem, sobretudo, no que se refere à religião, embora se estenda também à política desse país.
Porém, a principal questão que se desenha aí não é simplesmente atestar e exemplificar o fundamentalismo protestante que caracteriza os EUA. Também não é, a meu ver, rejeitar ou apoiar tal ato; qualquer um com o mínimo de bom senso reprova a infantilidade e estupidez desse pastor em, gratuitamente, acirrar os ânimos e alimentar ódio sobre um conflito bastante sério e que vá além de uma guerrinha de isqueiro, papel, bandeiras, bíblias e Corão.
A questão interessante a pensar, me parece, consiste em saber se se deve ou não proibir a queima do Corão. Evidentemente, muitos se sentirão ofendidos e insultados, e os motivos e as razões dos piromaníacos protestantes não são lá convincentes nem razoáveis, todavia, ainda que ética e politicamente condenável e estúpido do ponto de vista racional, penso que não há que proibir a queima do Corão. Em que se fundamenta tal disparate, perguntaria o leitor? Não, não é meramente por causa da liberdade de expressão, essa premissa sagrada de nossas sociedades liberais.
Sustento um direito à profanação. De um ponto de vista, digamos, político-filosófico, a profanação é fundamental, porque por meio dela restituímos ao uso, ao arbítrio e à racionalidade dos homens o que antes, por engodo e arbitrariedade, pôs-se em separado, numa esfera divina e transcendente. A religião e o sagrado são, de uma maneira geral, prescritivas e restritivas no sentido em que afirmam que há coisas, temas e motivos que não cabem aos homens conhecer, discutir, nem intervir na medida em que referem-se a uma outra esfera, aparte da “esfera dos negócios humanos”, para utilizar a expressão de Hannah Arendt. Graças a essa separação, criam-se os “monopólios dos bens de salvação”, as hierarquias entre os mediam a relação com o sagrado e aqueles que não tem acesso direto a ele, inventam-se mitos pelos quais se mata e se morre.
Portanto, a tola extravagância do pastor norte-americano em propor a queima do Corão, ainda que ele não saiba disso e o faça, ironicamente, em nome do sagrado, devolve à esfera humana o que antes estava sob a tirania de um erro, de um engano, de sorte que o alça à discussão, à desmitificação. Pois as folhas queimadas não trarão pestes e pragas vindas dos céus, lançada sobre a terra por Deus poderoso e mal-humorado, mas sim, talvez, aviões pilotados por homens enfurecidos e embrutecidos por fábulas.
O ato de queimar o Corão questiona este tão enraizado sentimento de que há coisas as quais não se pode tocar, que existem coisas sagradas diante das quais se deve tirar os sapatos, curvar-se e tolher as mãos para não contaminá-las com nossa imperfeição e sujeira. A profanação não visa ridicularizar o sagrado ou, como intenta o ignorante pregador, ofendê-lo. Profanar significa retirar as auréolas e o véu da ilusão para submeter, ou melhor, restituir o que se quer e se pensa como eterno, puro e perfeito à falibilidade e à precariedade que selam tudo quanto existe na esfera dos mortais.
Ainda que apreciador de uma boa blasfêmia e toda irreverência para o sagrado quando este nem sempre se faz oficialmente religioso a queima do Corão não deixa de me parecer estúpida, pelas questões já assinaladas e por este livro ter também um valor poético e histórico.Não acredito que haverá uma proibição ao ato. Seja como for a "gravidade" do fato apenas serve para atrair a atenção ao pastor e criar espectativa sofre consequências.
ResponderExcluirThiago Pinheiro
Olá, Thiago,
ResponderExcluirComo afirmei no texto, a campanha e as "razões" do pastor para justificar a queima do Corão são estúpidas, tolas e infantis. Evidentemente, estou em pleno acordo quanto isso e também com o caráter midiático da campanha.
Porém, destaquei o que me parece um elemento atraente e interessante da profanação em geral. Um certo senso agudo e exigente de "democratização" e "igualdade" que ao restituir ao nível do vivos aquilo que se crê separado, num lugar divino inalcansável aos homens, desestabiliza hierarquias, dogmas e consensos. Penso que há na profanação um potencial político bem interessante, nesse sentido, e pouco lembrado em comparação com o potencial artístico e filosófico.
Bem, a intenção do texto é apontar uma direção para outras questões. Abraços,
Só a religião e os demais sistemas dogmáticos de ideias dão certa lucidez para esse tipo de ato. Quer dizer ninguém queimaria qualquer outro livro em especial sem ser tratado como monomaníaco.
ResponderExcluirThiago Pinheiro
Bom texto! Interessante por tentar sair daquilo que é mais evidente e obvio, e perscrutar algo que merece ser pensado.
ResponderExcluiro texto tem meu total apoio. Sempre me senti um “injeitado” (quando mais jovem) por não crer em coisas sobrenaturais. Quando mais novo eu tinha medo de ladrões e do cinturão do meu pai, fantasmas ou a mão de Deus nunca foram impedimentos para mim. Não apenas isto, cresci sendo insultado pelos religiosos (e continuo sendo, tendo em vista que os religiosos não conseguem tolerar a idéia de alguém que não crê no fantástico – pois é isso que a religião o é, uma forma de sair do mundo, encontrando seres fantásticos e milagrosos capazes de tudo realizar, o que na vida “real” não ocorre) e tendo meus princípios desvalorizados e rejeitados unicamente devido ao fato de não crer em um Deus criador. Fora as tantas vezes que os religiosos me jogaram pragas, dizendo que vou morrer sofrendo ou algum dia ainda estarei em uma cadeira de rodas (é incrível como os religiosos querem e desejam “a morte” - cultural ou física - daqueles que não pensam como eles, prova é que lhe desejam logo uma praga para que algo de muito ruim aconteça com você por não acreditar no santo Deus criador….A liberdade religiosa deve ser entendida em seu amplo aspecto, e o texto ao pensar a possibilidade da violação de livros sagrados nos trás um grande acréscimo.
ResponderExcluirVivo pensando em colocar um adesivo no meu carro dizendo: “Você precisa de Deus para ser bom? Nós não! – Orgulho Ateu.
Mas já me disseram (sabiamente) que caso o faça terei meu carro depredado (é, os homens de deus também cometem vandalismos, mas quando é em nome de Deus pode)….
Olá, David
ResponderExcluirQuando perguntado se sou ateu ou agnóstico, costumo responder que:"Quando discuto com crentes sou ateu, quando discuto com ateus sou agnóstico"
Pois penso que não faz lá muito sentido, afirmar uma identidade ou doutrina ou filosofia - ateísmo - em relação ou contra algo que não existe - Deus. Afinal, por que daríamos uma importância e superestimaríamos um equívoco, um engodo?.
O combate contra religião deve ser empreendido no campo da crítica, política e cultural, aos seus valores, ritos e visão de mundo, erguida pelos seus comissários da mentira. E aí, penso que vale mais as provocações, as ironias e as paródias realizadas por filósofos e artistas iconoclastas e sociólogos mordazes que lhes apontam as incoerências, as pré-noções e os abusos da moral religiosa em geral, como vc recordou no seu comentário acerca das "pragas jogadas", do que trabalhos bem fundamentadas que visam provar pela matemática, física ou biologia a não-comprovação de Deus.
O adesivo seria uma ótima provocação, mas certamente, pela intolerância, seu carro seria no mínimo riscado em toda esquina.
Fico feliz e grato que o texto tenha suscitado discussões. Afinal de contas, a idéia da profanação exatamente discutir, avaliar ao invés, como faz a religião a partir da noção de sagrado, interditar, velar, resguardar e preservar do entendimento e da ação humana certas coisas e temas.