Sobre nossa época, a rigor, costuma-se caracterizá-la como um tempo desprovido de utopias; pelo menos aquelas grandiosas que ao colocarem o bem no futuro justificavam ao mesmo tempo o mal do presente e o tortuoso caminho até a redenção. Esses dias de fé na história, na capacidade técnica, política e racional dos homens de forjarem seu próprio destino até o paraíso, afirmam estudiosos e artistas, perdeu o seu impulso. O sopro messiânico que nos acalentava bruscamente cessou. Nem Deus, nem Proletariado, nem Homem. Todos esses conceitos que convertemos em agentes universais, os quais eram responsáveis pelo otimismo acerca de nossas iniciativas, afundaram vagarosamente sob nossos olhos e mãos. Com isso, restaram os frêmitos da agonia das inumeráveis mortes – da filosofia, da política, da arte, da história, do sujeito etc. – cuja duração ou estado de coma é algo extraordinário e digno de estudo. O que escapou dessa funesta chacina, como o capitalismo e o meio ambiente, exclamam demasiado alto alguns, já tem a sua data fatal agendada.
O resultado do fim das utopias seria uma época gravada pelo signo da ruína, na qual as sombras daqueles agentes universais e os restos dos valores e conceitos anteriores nos acenam, com ironia e maldade, para lembrar-nos de nossa impotência contemporânea. A outrora meia-dúzia de grandes narrativas providencialistas, que alimentavam o coração e o espírito dos homens, não desapareceram simplesmente. Na verdade, assim me parece, elas transmutaram-se em uma centena de esmigalhadas utopias; micro-utopias que, contudo, mais do que consolar, atormentam as “consciências infelizes” da contemporaneidade.
Dessa forma, o tempo das utopias ainda perdura, apesar do aspecto maléfico segundo o qual elas agora se manifestam. Assim, vivemos como podemos no entulhar inconcluso de restos e ruínas que nos rodeiam. Nossas micro-utopias em busca do corpo esbelto e perfeito, do emprego dos sonhos, do prêmio da mega-sena, da autorrealização, enfim, revelam-se, tragicamente, como aquilo que ameaça reduzir também a nós mesmos em ruínas se, por acaso, fracassarmos.
Nossas micro-utopias que nos impulsionam a atravessar o imenso mar da vida são também nossas micro-tiranias, as quais se conservam, sem descanso, em nossas costas como um vigia dos forçados de chicote em punho. Desde já, a pergunta que pode trazer algum fôlego de vida, consiste em constatar se uma sociedade descrente em sua capacidade de gerar utopias, de fascinar-se coletivamente com o impossível, com ideais a que buscar e investir o esforço diário de respirar com algum sentido para além da bruta conservação, não é ela mesma uma sociedade arruinada, que vegeta a espera de seu lá o que? E, que, portanto, necessita de alguma forma retirar, ou melhor, criar de suas próprias ruínas o elemento vivo que a permita novamente começar em direção a um mundo que ainda não é, mas que pode vir-a-ser.
Partilho dessa sua sensação. Uma sociedade sem utopias também me parece estar em ruínas. No entanto, como sempre, novos caminhos já devem estar aparecendo no meio disso, por aí, em alguns cantos. Afinal de contas, a modernidade já nasceu com o Romantismo acenando-lhe as mazelas nas fuças. ;)
ResponderExcluirMe ocorreu uma coisa, Alyson. Será que o corpo esbelto, o emprego dos sonhos e o prêmio da mega-sena serim micro-utopias? Como elas são praticamente "obrigações", fico aqui com meus botões achando que na verdade essas coisas fazem parte da normatividade que impera.
ResponderExcluirQue bom ler coisas que façam pensar!
Abs.
Olá Malva,
ResponderExcluirObrigado pela visita e, sobretudo, pelos comentários. Espero vê-la novamente por aqui.
Quanto as resistências e as possíveis criações sem dúvida estão a pulular, ainda que dispersamente, por todos os lados, pois que matéria mais frutífera pode haver para a criação poética, política e filosófica do que a decadência, a ruína, esse duplo espelho através do qual vislumbramos a um só tempo, com admiração e pesar, passado e presente?
A questão reside em indagar a propósito de como estamos a nos valer dessa matéria, de um ponto de vista coletivo, como energia viva para a criação e a crítica, tal como o Romantismo o fez contra os excessos e as pretensões do iluminismo.
Sobre sua questão acerca das micros-utopias, de fato, vc está certa, pois elas são colocadas a todos como "obrigações". Mas, penso, que são "obrigações" a serem sonhadas e cobiçadas por todos, e não "obrigações" impostas a serem, pela obediência, seguidas.
São micro-utopias no sentido de que são "oferecidas" às pessoas como a fonte da autorrealização individual, como aquilo que elas devem buscar para se sentirem realizadas. O corpo esbelto, o prêmio da mega-sena, é o não-lugar que as pessoas devem perseguir, sonhar, como o que lhes brindam sentido e a possibilidade de lhes redimir da trivialidade e insatisfação nas quais, crêem, suas vidas estão mergulhadas.
A ironia e a crueldade consistem no fato de ser, precisamente, o desejo, aquilo com que mais sonhamos, nossas micro-utopias, a raiz do que nos faz sofrer - micro-tiranias. Anteriormente, a imaginação, o sonho, a utopia, enfim, eram a matéria para a intensidade da vida, para a mudança. Hoje, é, de certa maneira, através desses últimos que se apequena a humanidade.
Alyson. Tua reflexão sobre o mal-estar da contemporaneiadade me troxe ao menos duas questões no tocante ao declínio da utopia que falas, se pensada como guia para a redenção. É realmente necessário a identificação de um Sujeito em maiúsculo tal qual o marxismo pregava? precisa-se projetar um paraíso futuro para se perceber na pré-história da humananidade? ( digo para que o governo das coisas sobre os homens se torna o contrário). No mais eu acordo com o que há de trágico nessa situação. Já ao apontares como micro-utopias o corpo esbelto, um bom emprego ou o prêmio da mega-sena acho que não me convencestes. Pelo menos nestes termos. Deves com certeza também observar que embora o fracasso é um fantasma que espreita, a auto-realiazão torna-se um expediente que exige aprendizado e nos livra da sina ou destino na medida que é um objetivo.
ResponderExcluirPS. Tu escreves muito bem!
Thiago Pinheiro
Olá, Thiago! É uma alegria vê-lo por aqui, e, mais ainda, dialogar contigo.
ResponderExcluirSobre as primeiras questões, penso que, pelo menos no que se refere as utopias providencialistas do século XIX e começo do XX, a questão da identificação com um Sujeito e um tempo transcendente são imprescindíveis.Porém, se tais elementos são imprescindíveis para as utopias em geral, aí é uma outra história. Às vezes, os críticos das grandes narrativas exageram em seus rechaços sem ponderar acerca de suas posturas e as consequencias em jogo - simplificações, generalizações, maniqueísmos etc.
A última questão sobre as micro-utopias é mais delicada para sustentar, por isso mesmo, a mais frágil. As micro-utopias proporcionam uma especie de idenficação com um sujeito imaginário - um novo "eu" rico, bonito e realizado -, elas são utópicas nesse sentido. Mas, como observaste, elas nos livram do destino, da sina, pois o êxito e o fracasso são fruto de nosso esforço e responsabilidade, de nosso aprendizado e agência: "somos o responsáveis pelo design de nossos corpos", diz Giddens. Parece-me que é justamente nesse ponto, que o trágico incide. Não há o conforto do destino, nem convicção nem resignação. Só há incerteza, dúvida, risco... E tudo isso é posto sobre os ombros de indivíduos pulverizados.
Abraços, Thiago, espero vê-lo novamente por aqui.