Abaixo o interessante e importante texto/relato retirado do sitio digestivo cultural, escrito por Marcelo Spalding a propósíto de uma situação que maior parte do meio acadêmico já está careca de saber e critica, mas que pouco tem feito para combater, a saber: os métodos de avaliação dos pesquisadores e o produtivismo que assola as universidades. As conseqüencias da corrida para o melhor Lattes - leia-se, maior - tem produzido diversos efeitos perversos à Ciência; pode-se dizer, inclusive, que já não é tanto a descoberta, a inventividade e o risco de conceber coisas novas que movem a produção científica, mas o impulso estúpido e irrefletido de redigir artigos com a mesma criatividade de quem copia uma receita de bolo para públicá-los, o mais rápido possível, nos periódicos mais atrativos para a pontuação. Enfim, deixemos a palavra com o Marcelo Spalding:
Quanto custo rechear seu currículo Lattes?
Essa não é uma coluna sobre cultura, é sobre educação. Mas o que tem mais a ver com a cultura do que a educação?
Todo estudante universitário já ouviu falar do Currículo Lattes, todo aspirante a Mestre ou Doutor decerto já fez o seu e àqueles com pretensões acadêmicas é imprescindível atualizar seu Lattes pelo menos duas vezes por ano. O Lattes é critério quase universal para seleções de programas de pós-graduação do Brasil e do exterior, além de ser fundamental nas bancas de contratação de professores universitários em concursos e editais. Mantido pelo CNPq, é uma forma democrática de centralizar as informações acadêmicas de todo país, permitindo aos pesquisadores encontrar colegas de áreas afins e, a quem seleciona, avaliar a produção científica do aspirante à vaga.
Os críticos dizem que o Lattes transforma todo o esforço intelectual dos pesquisadores em quantidade, em números, simplificando e até ridicularizando uma produção eminentemente qualitativa. Ocorre que no final do Lattes há uma tabela informando quantos artigos foram publicados, quantos livros ou capítulos de livros, de quantos congressos o fulano participou. Mas até aí nenhuma novidade, se você começou a ler este texto provavelmente já sabe o que é e como funciona o Currículo Lattes. A novidade é que um bom Lattes tem preço.
Com o crescimento dos cursos de pós-graduação no Brasil e o amadurecimento da Plataforma Lattes, a corrida por "qualificação" tem sido grande, e a lógica quantitativa acaba incentivando a formação de um verdadeiro "mercado acadêmico". Já havia percebido isso ao me inscrever em um congresso, no meu caso o da ABRAPLIP, mas poderia ser de qualquer área e em qualquer lugar. Se você quer que seu trabalho seja apresentado, antes da inscrição deve enviar um resumo e aguardar o aceite. Elaborei o resumo, nas normas que exigiam, e o submeti. Em poucas semanas, um e-mail informa que o trabalho foi aprovado, e o ingênuo aqui fica feliz da vida: vai no site, preenche a ficha de inscrição, imprime o boleto, paga no banco a taxa de cento e poucos reais (há eventos de R$ 300,00, R$ 500,00, e por aí afora, especialmente se você for da área de Medicina ou Direito). No dia da minha apresentação no evento, a surpresa: havia cinco pessoas na sala: um professor e quatro apresentando trabalhos. Público para quê? Discussão para quê? Afinal, dali sairemos com um certificado (enviado por e-mail), um CD-ROM e um número a mais no Lattes!
Evidentemente, a proporção não é um por um, mas tão evidente quanto é que os congressos hoje estão inchados com dezenas de apresentações de trabalhos, e o aceite desses é uma mera formalidade. Um trabalho medíocre será aprovado se não comprometer o evento e o autor lá estará, enquanto um aluno excelente que faça um artigo excelente mas por algum motivo não possa pagar a inscrição, ah, esse não estará lá. Afinal, sai caro um bom Lattes...
Mas vamos além, afinal de contas, poucos dos que se aventuram em cursos de pós-graduação não teriam dinheiro para a inscrição de um evento desses. E a passagem? E o hotel? E férias, para quem não tem bolsa? Sim, porque se você tiver pretensão de dar aula na USP, na UFRJ ou na UFRGS, é bom sua vida acadêmica não ficar restrita a Cacimbinhas, é bom você ter ido aos eventos nacionais mais importantes da sua área, ter contatos, viajar. E não espere algum desconto especial para viagens acadêmicas por parte das companhias aéreas. Muito menos bolsas oferecidas pelos cursos de pós-graduação, a não ser em raríssimos ― e discutíveis ― casos. Afinal, sai caro um bom Lattes...
Infelizmente, não é só isso. Estávamos tão acostumados a participar de congressos e pagar por isso, estamos tão satisfeitos em aproveitar esses eventos para fazer turismo pelo Brasil (ah, claro, ninguém acha que o controle de presença nesses eventos seja muito rigoroso, né?) que nem percebemos o quão injusta é essa lógica do "pagando bem, que mal tem". Quero ir além. De uns tempos para cá, tem se tornado comum no Brasil pagar pela publicação de artigos! Sim, os artigos científicos, tão puros, tão imparciais, tão citados como referência do conhecimento pela mídia, pelos nossos professores, publicá-los também tem um preço, e bem salgado.
Ainda não havia me acontecido isso, mas uma amiga da área da Enfermagem ousou submeter seu artigo de conclusão de curso para a Revista Gaúcha de Enfermagem e, adivinhem, o artigo foi aceito para a publicação com uma condição: ela e as outras duas autoras do artigo deveriam ser assinantes da revista para essa publicação, e, claro, isso tem um custo: R$ 130,00. Cento e trinta! Fiquei pensando se já aconteceu de alguém enviar artigo e ele não ser aceito, afinal cenzinho é cenzinho...
Pensei em reclamar para a UFRGS que uma revista com seu logotipo fizesse esse tipo de coisa, mas a Universidade está em férias. Entrei em contato, então, com a Ouvidoria do Ministério da Ciência e Tecnologia, a fim de denunciar esse tipo de abuso num país e numa universidade que lutam pela inclusão acadêmica de negros e pobres. A resposta, conclusiva, me fez perceber que o Lattes realmente tem preço:
Prezado Marcelo,
A cobrança para publicação de artigos é prática frequente na área internacional, inclusive porque alguns periódicos científicos são bancados pelos próprios autores. A informação, pelos custos que envolve, resulta cara. No Brasil, esta prática ainda não está amplamente disseminada mas já é praticada, principalmente na área médica.
No caso específico, segundo sua informação, o pagamento não é propriamente pelo artigo, mas para que ela se torne sócia da revista. Sugerimos que consulte a política editorial do periódico, que deve estar impressa na própria revista ou no seu site. A política editorial informa quais são os critérios utilizados para seleção e publicação de artigos.
Nada obstante, caso ela não concorde com o critério, pode submeter seu artigo a outros periódicos que não exijam contrapartida financeira. Seguramente na sua área de especialização existem vários em todo o Brasil.
Atenciosamente, Ouvidoria-Geral do MCT
Indignado, entrei em contato com minha orientadora de graduação, uma professora muito amiga, Doutora em Comunicação. E aí a professora me lembrou de que quando terminou seu Doutorado, recebeu pelo menos cinco cartas a parabenizando e a convidando a publicar seu belíssimo trabalho em livro. Mas, é claro, um livro acadêmico é sempre importante e, afinal, sai caro um bom Lattes. Caro quanto? Cinco mil reais.
Não posso concordar com essa lógica, e me surpreende que entidades como a UNE fiquem mais preocupadas com o preço da passagem de ônibus do que com esse tipo de descalabro. Não é novidade alguma que a seleção para os cursos de pós-graduação passam por critérios pessoais, políticos, nada objetivos, e no momento que se cria uma ferramenta para tornar a escolha um pouco mais democrática, admitiremos que essa ferramenta sirva para privilegiar os estudantes com mais poder aquisitivo? Sem demagogia, dessa forma algum pobre que entrou na universidade pelas cotas ou pelo Pró-Uni conseguirá ingressar em Mestrados e Doutorados a partir desse critério mercantilista?
Para mim, o caso é muito grave. São essas pessoas com Lattes recheados que irão lecionar nas universidades federais e particulares (e há aos borbotões), são elas que irão formar os futuros médicos, advogados, jornalistas, professores? E quais os valores que essa geração acadêmica tem a passar? O valor do "quanto mais, melhor", do "quem pode mais, chora menos"? E essa realidade, todos sabem, se reflete desde o Ensino Fundamental, onde as creches e escolas públicas são cada vez mais abandonadas e as particulares proliferam e profissionalizam-se. Mas aí já é assunto para outra crônica...