quinta-feira, 20 de maio de 2010

Sobre o tempo e a vida científica



Nos últimos dias, a vida anda um tanto quanto acelerada. As horas, cada vez mais estreitas, fogem desdenhosamente. Por isso, pouco escrevi nesses dias fugazes. Aqui e acolá encontrei uma brecha no tempo em que pude ler alguma coisa, conversar com amigos ou simplesmente parar. Dentre as nossas misérias, talvez, hoje, o tempo seja a maior delas. Como a maior parte dos problemas humanos significativos, também a criação é uma questão a ser tratada do ponto de vista do tempo.

Não faz tanto tempo que dedicar-se a produzir algo – um texto, um quadro, uma música – significava enfrentar as forças de um mundo largo e demorado. Ler, escrever, pintar, construir, enfim, todas essas coisas, pode-se assim dizer, eram precedidas por um certo ritual de preparação que consistia numa espécie de transição ou passagem do mundo prático e ordinário para um espaço-tempo de amenidades, quietudes, de calmaria e diálogo com a alma, no qual deve-se, com paciência e obstinação, esperar os devidos efeitos.

Portanto, tratava-se de um ritual de preparação para adentrar num mundo exigente de uma calma e paciência sem angústia, embora inclinado à melancolia. Suportar o silêncio, o tédio, a imobilidade das coisas, a solidão e a calmaria da alma eram pré-requisitos necessários para obter algo de verdadeiramente relevante. Eles formavam o pathos do tempo do conhecimento. Havia algo de místico, seguramente. Uma mística escolástica e aristocrática. As atividades e disposições alinhadas à criação intelectual e artística equiparavam-se a um processo paulatino de ascensão e queda, de elevar a si mesmo, com espanto e coragem, ante aquilo que Pascal chamava do “silêncio eterno dos espaços infinitos”. 

Poder-se-ia dizer, inclusive, que a paciência, a concentração, a lentidão, o isolamento, a experiência com tempo dilatado constituíam os a priori, ou seja, as condições de possibilidade, em seu sentido estrito, da criação e do conhecimento. Essas disposições interiores eram a base da economia criativa, pré-requisitos necessários para o cultivo de uma vida científica e filosófica vocacionada, ou seja, das habilidades e virtudes que tornam-na, de fato, uma vocação capaz de produzir idéias relevantes.

Não se trata, em última análise, de converter-se num eremita encouraçado contra a própria torrente da vida, suas urgências e chamados, mas de conquistar a quietude necessária, com todo o risco e custos que isso implica, para que em meio à distração e às frivolidades deter a atenção para clarificar e discernir as coisas do mundo, sua opacidade. Lembrem-se que no olho do ciclone reina a tranqüilidade e o silêncio. É habitando nele que, perfurando as espessuras, podemos apercerber-se do modo próprio do nosso tempo, do sorriso demente que marca a face de nossos dias.

Portanto, em vez de uma objeção à vida ordinária, temos, ou melhor, tínhamos, creio, um ato positivo sobre o tempo, cujo intuito consistia em determiná-lo, por sua suspensão em um espaço estriado e explorátorio, ao invés de permitir determinar-se por ele.

Suspender o tempo e deter-se na quietude significam, na verdade, estender, ainda que por meios penosos e lentos, uma ponte até a vida e o presente; habitar, temporariamente, o meio, o olho do ciclone, e enxergar como as coisas erguem-se sobre nós, turvando-nos o entendimento; razão pela qual somos levados a amar unicamente aquilo que pode ser abreviado e resumido.

Como, mais do que nunca, medimos, refletimos e organizamos nosso tempo em função da quantidade de coisas que temos de fazer em um determinado prazo ou espaço de tempo em vez de o fazermos segundo a natureza dessas coisas e de nossas próprias exigências e expectativas alinhadas segundo certos ideais, as perdas, as desilusões, as desgraças e os fracassos são aquilo que, por excelência, escrituram e contabilizam o tempo contemporâneo, pois são o que restam de duradouro.


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