sexta-feira, 7 de maio de 2010

Políticas da memória: STF e a Anistia



A decisão do STF sobre a validade da Lei de Anistia corrobora a firme tendência de nossa história recente, defendida com ardor por certos segmentos, em manter a não-apuração da responsabilidade dos envolvidos direta e indiretamente pelas graves violações de direitos humanos durante a ditadura militar. Os velhos mitos ligados ao suposto caráter pacífico e cordial da convivência social dos brasileiros são acionados, novamente, para ocultar e suavizar os conflitos, os antagosnismos e as cisões que, sob certas circunstâncias, tornam-se demasiados visíveis.

O impedimento normativo para não lidarmos com o nosso passado é uma das faces dos mecanismos de ocultação dos conflitos e das cisões, que busca interditar a discussão de temas e questões que necessariamente trariam à luz as divergências, os impasses não-resolvidos, as tensões delicadas e as estratégias e formas de dominação e ocultamento constituintes da história e da sociedade brasileira recentes. Lembremos as palavras de Foucault em A Ordem do discurso:

“Suponho que em todas as sociedades a produção do discurso é sempre controlada, selecionada, organizada e distribuída por um certo número de procedimentos que têm por finalidade esconjurar os poderes e os perigos, dominar o acontecimento aleatório, desviar-se da grosseria e da temível materialidade.”

O entendimento do STF sobre a Lei de Anistia visa preservar a “ordem do discurso” sobre a ditadura militar, vedando os questionamentos e as reivindicações que a desestabilizariam, de maneira que as pré-noções que muitos alimentam e que sancionam o caráter “menos violento e opressor” da ditadura militar no Brasil em relação àquelas implantadas em nossos vizinhos sul-americanos cairiam por terra. Desse modo, a meu ver, a maior parte dos ministros do STF mantém, pelo menos, uma relação empática com a alta cúpula dos militares.

O que está em jogo no debate sobre a Lei de Anistia e a apuração das responsabilidades dos crimes políticos e comuns, cometidos no decorrer do regime militar no Brasil, diz respeito a uma certa maneira de conceber - para o presente - o passado, a memória e o curso da história. São distintas maneiras de conceber e experimentar a história, a memória e o passado o que move os segmentos e movimentos sociais que reivindicam a responsabilização dos agentes da repressão durante aqueles anos e os apaziguadores de plantão da Ordem, e não apenas diferenças de intenções políticas.

A Lei de Anistia congela o passado. Concebe-o, cristalizando-o, como algo resolvido, acabado e fechado, por direito e fato, por aqueles que, na época, gozavam da “legitimidade” para defini-lo. Esta é uma operação típica dos conservadores; congelar o movimento, suster e cristalizar quaisquer elementos que remetam à processualidade, à variação. O STF endossou essa filosofia da história positivista e reacionária, que louva deixar o passado pra atrás e o mundo seguir o seu curso natural.

Atitudes como essa encorpam ainda mais os pré-conceitos e os efeitos de poder dos discursos em sua função de blindar à ditadura da devida avaliação política, moral e jurídica pela sociedade. No Brasil, me convenço cada vez mais, que, apesar do estabelecimento dos princípios democráticos de convivência social e política, vigoram vividamente do policial aos ministros do Supremo, passando pelos agentes carcerários, jornalistas, gestores e secretários de segurança, atitudes e pensamentos que atestam a continuidade do autoritarismo e dos componentes justificadores das violações de direitos humanos perpetrados durante a ditadura militar. Nesse sentido, as propostas do PNDH-3 possuem um papel fundamental para a resistência e a destruição dessa continuidade.

É necessário politizar a história e a  memória,  conferindo, inclusive,  um fundo institucional para  os seguintes questionamentos: Como lidamos com o nosso passado? O que nós, no presente, fizemos e fazemos em relação ao passado para compor e recompor nossa memória histórica? Que tipo de responsabilidade moral e política nós, brasileiros do presente, temos com o passado e as práticas e discursos que lhe deram forma e validade institucional? O que é que do passado ainda nos atravessa e pesa sobre nosso entendimento, isto é, quais os discursos de poder que ainda nos fisgam e que dificultam as transformações de determinadas relações?

Ora, um dos grandes méritos do PNDH-3 reside na incorporação do tema sobre a responsabilidade de atos e violações cometidos no passado e também de, nas entrelinhas, interpelar publicamente à sociedade com aquelas questões que aludi acima. Trata-se de re-historicizar o passado no intuito de procurar uma outra articulação entre passado e presente de modo a nos remeter à nossa própria condição histórica, à possibilidade contínua de construir novos sentidos, re-significações, orientações, etc.

Liberar o acesso aos arquivos da ditadura e apurar as devidas responsabilidades sobre as graves violações cometidas contra os DH significam não só tomar conhecimento do que se passou com homens e mulheres perseguidos, torturados, desaparecidos e assassinados durante os “anos de chumbo”, mas também retirar da consciência coletiva, do senso comum, como preferirem, as cristalizações ideológicas dos discursos de poder e verdade depositados por anos à fio pelos segmentos hegemônicos de nossa sociedade. E, assim, abrir nossa história, o futuro e o passado para novos horizontes que urge perseguir, inventar ao invés de descobrir, fixar.

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