quarta-feira, 26 de maio de 2010

A Crise Financeira e a "utilidade" da Filosofia



A febre pela austeridade econômica que acomete a Europa Ocidental nas últimas semanas, devido a mais recente crise de endividamento envolvendo os países da União Européia, chegou a tal ponto que até programas de filosofia estão sendo sumariamente fechados. É o caso do Centro de Investigação de Filosofia Moderna da renomada Universidade britânica de Middlesex. Tal fato, ainda que lamentável e digno de reação, não é de modo algum surpreendente, pois em momentos de cortar gastos, a crise é o argumento que torna inevitável para os gestores a pergunta, que está sempre no ar, sobre a utilidade da filosofia.

Sob os critérios que presidem a percepção capitalística do mundo e das atividades humanas, a filosofia é uma atividade de pouco retorno. Ela não é rentável, isto é, pelo menos segundo o princípio máximo e mais valorizado de rentabilidade e desempenho nas sociedades capitalistas; a rentabilidade no mercado. Desde esses critérios, a filosofia é irrelevante, por isso que em momentos de crise econômica, de abalos mais firmes que colocam sob ameaça a boa condução da reprodução do sistema, as atividades consideradas “improdutivas” são necessariamente postas em suspensão, “cortadas do orçamento”. Daí decorre a conclusão de que a filosofia, nas sociedades capitalistas, é somente uma atividade que se tolera, com alguma ironia e compaixão em situações de relativa estabilidade econômica e política. Fora disso, a filosofia é uma extravagância. Em situações normais, mantém-na por uma concessão e agraciamento do Estado a alguns poucos “loucos” e “tagarelas” ou como uma vaidade e um hobby para os ricos ávidos por alguma ilustração e, por último, como indutor de um saber de reserva, ocasional e livresco para cientistas, políticos e outros eruditos adornarem seus trabalhos, discursos e suas conversas.

Portanto, se os poderes estabelecidos em sua misericórdia concedem um lugar institucional, ainda que marginal, à filosofia, não é apenas em virtude das razões mencionadas acima, mas também por um sentimento de dívida histórica e moral para com esta última. Afinal de contas, o que seria das sociedades modernas sem as invenções extravagantes de filósofos como Locke, Montesquieu, Kant e Hegel? Estes senhores que forneceram as bases do desenho normativo de nossas sociedades.

Ora, uma vez ciente desse cinismo, a filosofia, mais do que qualquer saber, deve ser necessariamente crítica; interferir e atacar o seu tempo de maneira a mostrar a sua “utilidade” através da virulência de seus golpes desveladores. A serventia da filosofia deve ser a crítica. A filosofia serve para afligir e para contrariar pessoas e idéias estabelecidas, para denunciar as mistificações, o disparate e as baixezas do pensamento sob todas as suas formas, como sentencia Deleuze. Então em que época mais do que a nossa a filosofia pode ser mais “útil”? Época da mistificação do mercado e os de seus disparates que apregoam sua infalibilidade para a felicidade e o desenvolvimento ao “corrigir” naturalmente as disparidades, animosidades e embargos sociais e políticos para tais; época das baixezas dos organismos internacionais e transnacionais que praticam bullying econômico contra países e nações inteiras sob o falso e cínico argumento de “Plano de auxílio e metas de Estabilidade”.

Se é verdade que é nas situações difíceis que o caráter de uma pessoa resplandece abertamente, o mesmo talvez deva valer para as épocas e culturas. Creio que um dos critérios para medir o valor de uma época deva ser o tratamento e o papel que a mesma, em tempos de crise e desagregação, relega aos filósofos e a filosofia; uma cultura vigorosa e cônscia de seu valor busca ouvir e ponderar a respeito das questões que as vozes e obras vivas daqueles que foram responsáveis pela construção de sua vitalidade e grandeza colocam. Uma época enferma, trêmula, recusa essas vozes e obras, e assim, fecha-se ao pensamento e a sua tradição. Prefere ouvir justamente os responsáveis pela baixeza e mesquinharia generalizadas.

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