sábado, 23 de janeiro de 2010

Um mundo tenebrosamente transparente




Houve tempos em que os europeus tremiam de horror ante a nudez. Inclusive, não custa lembrar, quando por aqui meteram os pés, e principalmente as mãos, escandalizaram-se com o “hábito” dos índios de andarem por aí com as “partes pudendas” à mostra. O que, com efeito, fizeram-nos, aliás, interrogar o Papa e os sábios da época, se aquela gente "despudorada" era de fato humana.

Pois bem, hoje, em conseqüência do atentado frustrado de um jovem nigeriano que tentou explodir um avião na rota Amsterdã-Detroit, os outrora pudicos europeus, se quiserem viajar, terão de expor sua nudez, como resultado da nova medida de segurança aérea, às máquinas de scanner corporal – body scanners. Essas máquinas, ou melhor, aparelhos são capazes de ver através das roupas, de por inteiramente o corpo á nu, em seu escrutínio a procura de artefatos ameaçadores à segurança, sejam eles uma dinamite ou um cortador de unha. Holanda, Inglaterra e França já aderiram a tal máquina.

Evidentemente, a maneira pela qual nos relacionamos com a nudez, a nossa e a do outro, é histórica. Norbert Elias (1993) enfatiza precisamente que a marcha do desenvolvimento histórico do ocidente moderno é definida pelo progressivo incremento de um controle corporal cada vez mais individualizador e racional. Trata-se, diz-nos Elias, de controlar e disciplinar as funções corporais, as emoções, os gestos, enfim, de criar sobre estes fronteiras, regras, silêncios, coberturas, para que assim, evite-se o embaraço e a exposição ao olhar do outro.

O que vemos atualmente na Europa e nos Estados Unidos, não significa uma pausa ou a derrocada desse processo histórico inapelável, o qual narra-nos, com o brilho e a clareza dos grandes autores, o sociólogo alemão. Ao contrário, são apenas novas práticas de controle - amparadas em novas tecnologias políticas e justificadas em menção a outros valores - de um mesmo processo. A naturalidade com que as pessoas aceitam tais procedimentos é testemunha da razoabilidade do argumento. Ora, o essencial continua a perdurar; o controle da imprevisibilidade dos corpos e o medo e a insegurança perante o mistério do corpo do outro.

O corpo de cada um é um continente de obscuridades. E, é exatamente isso que representa a ameaça. Não é por acaso, que Michel Foucault enfatizou em sua obra, como traço singular do exercício do poder na modernidade, a dimensão do olhar, a ótica que lança sobre alguma matéria sua luz a fim de identificar, corrigir, ameaçar. O olhar esquadrinhador do médico, do cientista e o seu objeto, do panopticon e seus presos, etc. O exercício do poder na modernidade é, sobretudo, uma operação sistemática de desvelamento.

Em nome da segurança – de quem? - e da prevenção contra a ação de organizações malévolas, somos todos definidos como suspeitos, uns mais do que outros, é verdade, mas ainda assim todos nós. Bastante tenebrosa essa nova relação, que, aos poucos, mas a passos largos, vem se desenhando entre cidadãos e Estado. Cade vez menos o Estado requer a nossa voz, a nossa palavra ativa, a vivacidade de nossa agência e participação na esfera de deliberação e decisões públicas, e cada vez mais exige nossa cumplicidade e submissão canina em ceder nossos corpos, nossos dados e informações às perícias, registros, fichamentos, etc. Nossa epiderme e nudez interessa mais ao Estado do que nossa inteligência.

Antes de encerrar, vale lembrar para aqueles, não amantes do erotismo pós-moderno, que as autoridades, num gesto valoroso de romantismo, permitirão a opção, para os que se sentirem incomodados com a frigidez e o superficialismo da máquina, do “apalpamento”. Cada dia mais me convenço que há mais razão em temer aqueles que nos dizem estar nos protegendo do que os terroristas.

Alyson Thiago F. Freire

Referência:

ELIAS, Norbert. 1993. O Processo Civilizador, vols. 1 e 2. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor.

Um comentário:

  1. Acho muito interessante as questões que circundam o fato sociológico do corpo em tela.
    Não se trata da pele, em temperatura e volume, odor e oleosidade, mas de sua imagem. Em branco gelo, tela fria. O controle dos corpos que interessa ao estado, faz questão de grifar que não quer o corpo em tela para a masturbação dos policiais,rsrsrsrs...
    os ambientes de exame sem erotismo algum, não quer o gozo da posse corpórea do outro, o mistério.
    Está tudo na superfície... são apenas portais eletrônicos que contam as filas, e lhes atribuem diversas distinções burocráticas.
    Por que não perguntam se alguém prefere ficar nu mesmo?

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