quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Haiti, ou o Hades da (Bio) política



A tragédia que se abateu sobre o já combalido Haiti, transformou este pequeno país de pouco mais de 27 mil quilômetros quadrados em um assombroso Hades. Nos últimos dias, imagens de cadáveres amontoados, gritos e gemidos entrecortados, destroços, dor e destruição, atingem-nos constantemente às retinas. Não foram somente as casas, os prédios, enfim, a infra-estrutura física do país que foi arruinada. Para os sobreviventes, o suplício urbano, pós-terremoto, que insistimos para fins didáticos de chamar Haiti, significa também o soterramento de sua geografia emocional, dos mapas mentais que os permitiam reconhecerem a si mesmos na cidade e ela própria. Seus trajetos são campos da morte, agora.

O cotidiano também ruiu. Toda solidez e recorrência da vida cotidiana, todos os marcos de orientação que conferiam consistência à vida, às ações e ao pensamento, desvaneceram. A já frágil economia institucional do Haiti foi literalmente posta à abaixo. Se admitirmos como verdadeiro, como sustenta a antropóloga Mary Douglas (1998), que as decisões dos indivíduos, principalmente as relativas à vida e à morte, não são tomadas por estes isoladamente, mas sim em função de um “pensamento institucional” compartilhado, então, o que acontece quando a facticidade das instituições – justiça, governo, norma jurídica –, isto que confere um plano de entendimento sobre a vida, as ações e a realidade social desaba e tudo o que move os indivíduos é a sobrevivência?

Segundo a antropóloga britânica, as situações de crise e instabilidade extrema, como a guerra, a fome ou um desastre natural como vemos hoje no Haiti, não significam uma espécie de revogação do contrato social, um retorno ao estado de natureza no qual todas as mediações culturais e padrões morais e de justiça seriam automaticamente dispensados e esquecidos. Pelo contrário, diz-nos a antropóloga: “O comportamento, numa situação de crise, depende de quais padrões de justiça foram internalizados, do que as instituições legitimaram” (DOUGLAS, 1998: 125).

As instituições possuem uma função lógica, moral e cognitiva. Para Mary Douglas, elas são a base para a operação prática da cognição humana, na medida em que é em função delas, que se assegura o compartilhamento e o reconhecimento dos esquemas conceituais, de analogias e moralidades mobilizadas pelos indivíduos para suas decisões, interpretações, etc. A economia institucional, isto é, o funcionamento de seus valores, normas, hierarquias, classificações, princípios, interdições, ritos, funções, implica necessariamente, pelas próprias características das instituições enquanto tais, em uma economia cognitiva, a qual é mais ou menos interiorizada na mente dos indivíduos, através da conformação, efetivada pelas instituições sociais, de um certo consenso sobre a apreensão das coisas, ou, para utilizar a expressão de Durkheim, um “conformismo lógico” acerca das categorias do entendimento. Por isso, a economia institucional, sedimentada no íntimo dos indivíduos, por operar como base cognitiva ou gnosiológica interiorizada, não é removível, por inteira, facilmente de um momento para outro, por mais extremo e furioso que seja o golpe.

Ainda que a economia institucional esteja, conscientemente ou inconscientemente, funcionando na vida dos haitianos, mediando suas relações sociais, seus juízos e suas escolhas sobre como manter a continuidade da existência, ainda que na mais dura consternação. Entretanto, seria ingenuidade não enxergar que, a despeito do seu entrelaçamento com a atividade cognitiva e moral dos indivíduos, o colapso literal das instituições implica uma nova condição, a qual está incluída na própria norma; o estado de exceção. As conseqüências do terremoto legaram aos haitianos, ou melhor, aos sobreviventes, pois não existe mais haitianos, um espaço de exceção que se projeta, inclusive, sobre seus corpos; transformando-os em qualquer coisa ou figura que vaga, que perambula entre restos; desnorteados e preocupados em demasia com as condições vitais de sobrevivência para conseguir compreender o que, como efeito dessa tragédia, eles passaram a ser. É esta nova condição, ou seja, a de sobrevivente, que urge ser pensada.

A incerteza, a busca sem garantia de êxito por comida, remédios e água, os mantém suspensos em uma zona intermediária, cinzenta como os destroços, entre a vida e a morte. Depois da dor, do choque inicial e do desespero pela morte de parentes e amigos, a preocupação recai sobre as condições sanitárias, as doenças contagiosas, a alimentação e a segurança, constantemente em estado de alerta por causa das disputas territoriais entre as gangues. Sob tais circunstâncias, pós-terremoto, a condição dos haitianos é de sobreviventes; uma massa, composta de silhuetas reduzidas à reunião de suas funções físicas.

O controle político sobre tal massa não diz respeito à submissão aos tradicionais aparelhos de poder - justiça, polícia, governo -, pois estes pressupõem a existência dos indivíduos como cidadãos, como sujeitos jurídicos. O que temos no desolado Haiti, são sobreviventes; sobre estes o controle político incrementa-se por outros meios. Os “haitianos” estão abandonados a sua própria violência e biologia. Nessas condições todas as garantias e proteções jurídicas são triviais. As conseqüências do terremoto delinearam nos corpos dos sobreviventes um espaço de exceção.

O humanismo de paliativos tardios da ajuda internacional é a única coisa que restou de política no Haiti. Mas é precisamente aí que reside um poder decisivo sobre os “haitianos”. Amiúde, esquecemos que entre os dedos de um burocrata tremula algo cuja letalidade e a ameaça pública pode ser tão devastadora quanto um terremoto. A posse das vidas, ou melhor, da sobrevivência dos que lá permaneceram está nas mãos dos organismos e agências internacionais, mais precisamente em suas canetas. Por assim dizer, esses organismos internacionais e seus burocratas passam a ter um poder de vida e de morte, de “fazer viver e deixar morrer”. Um poder sobre a vida, mas não a vida no sentido de seus direitos, protegida pelo conceito de cidadão, a vida constituída na polis. Antes, é um controle sobre o que resta da vida que é desfigurada das garantias e qualidades que tornam alguém um sujeito jurídico e político, ou seja, a vida reduzida ao seu sentido mais bruto. Um poder que se exerce sobre não-sujeitos.

A vida despojada de todo valor político, subsumida das proteções do conceito de cidadania, do direito, reduzida a pura condição biológica, é o que Giorgio Agamben, filósofo italiano (2007) chama de a “vida nua”. Quando o universo das expectativas é inteiramente voltado para o magro e esquálido horizonte da sobrevivência, do mínimo biológico, é assustador concluir que mesmas nas condições mais desesperadoras, onde a dignidade é quase por inteira perdida, ainda aí, na degradação e no terror, há um “resto” de vida sobre o qual é definido todo um espaço político. Sobre os corpos dos sobreviventes prolonga-se um espaço de exceção que institui em cada um uma zona de indistinção entre o humano e o animal, reduzindo seu estatuto ontológico a qualquer coisa de residual entre o biológico, o político, o social e o inumano.

Como Orfeu, que desceu à mansão dos mortos – Hades - para resgatar sua amada Eurídice, os sobreviventes da catástrofe do Haiti estão nesta zona de indiscernibilidade entre a vida e a morte, nem vivos nem mortos. Como nos campos de concentração, no devastado Haiti, a vida está implicada como um espaço de exceção. Nesse terreno não residem sujeitos jurídicos, senão meras existências, que sob o ângulo da vida nua, são efetivamente extermináveis.

Alyson Thiago F. Freire

Referências:

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte. UFMG, 2007.

DOUGLAS, Mary. Como as instituições pensam. São Paulo. USP, 1998.

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