sábado, 16 de janeiro de 2010

Por uma Política de Cotas audaciosa

As políticas de ação afirmativa ocupam mais do que nunca, no Brasil, o cerne da visibilidade pública. Elas são responsáveis pela criação de novos conflitos que cada vez mais ganham espaço no debate político e intelectual do país. A criação de conflitos, a manifestação do dissenso, é o alimento, a energia vital da democracia, a condição mesma para que esta não se torne um conceito, um objeto de saber, ou uma coisa da qual simplesmente falamos para defender, profetizar, elogiar, justificar, etc.

Não é novidade, em nossa história, que as mudanças sociais de tendência niveladora e democratizante sejam, quase sempre, recebidas com um sentimento de preocupação pelos setores conservadores de nossa sociedade. Principalmente quando essas são acompanhadas com o bilhete de ingresso a espaços e funções, socialmente valorizados, outrora negados ou restritos a determinados setores da população. A reação imediata é sempre o alarde e a ameaça que tais mudanças acarretariam nos valores considerados fundantes das “tradições nacionais”.

Desse ponto de vista, as cotas raciais, por exemplo, consistiriam num atentado em relação à nossa cultura e história social. Algo alienígena, fora do padrão e da lógica interna de nossa formação social. As cotas raciais ao solapar aquilo que, supostamente, constituiria à originalidade brasileira - a mestiçagem, a convivência harmônica entre as diferenças – instituiria algo “exótico” e contrário ao traço dominante de nossa cultura, ou seja: o dualismo racial, a divisão da nação com base numa linha de cor. O resultado: conflitos raciais antes inexistentes e a destruição das solidariedades fundantes de nossa cultura. Da Veja à Demétrio Magnoli, eis aí o argumento, e o medo ideológico, mais comum dos que se posicionam contrários às cotas raciais.

Por sua vez, a condenação às cotas sociais, destinadas a auxiliar o ingresso ao ensino superior de estudantes oriundos das escolas públicas ou mais pobres, segue a mesma linha de raciocínio do parágrafo anterior. Sua instituição é vista igualmente como um golpe nos valores essenciais de toda “sociedade moderna e democrática”. Ou seja, nas crenças liberais do mérito e da isonomia de todos perante a lei.

Em síntese, os posicionamentos contrários às políticas de cotas reivindicam, por um lado, um particularismo – extremamente naturalizado e essencializado - histórico-cultural do Brasil, e, por outro, o universalismo – igualmente naturalizado – dos valores da Ordem jurídica liberal, norteadora das sociedades modernas, eficientes e democráticas. Recorrer a fórmulas abstratas, ou melhor, a fabulações, contra desigualdades concretas é o mesmo que por, com as próprias mãos, uma venda sobre os olhos. O mais importante, como aprendemos desde Nietzsche, não é examinar a validade ou o grau de verdade dos valores e das representações mobilizados, mas quem os reivindica - quem exige igualdade e mérito?.

Nas últimas décadas, muitos autores das Ciências Sociais, da Filosofia e da Crítica Literária, como Edward Said, Stuart Hall, entre outros, partindo da idéia de que as identidades e os “valores civilizacionais” são sempre o resultado tenso, e nunca finalizado, das relações de forças assimétricas, de antagonismo e de hegemonia que constituem o social, dedicaram-se, em suas obras, a denúncia e a crítica de como as identidades e as representações hegemônicas de uma cultura ou nação, mascaram dominações, imposições arbitrárias de sentidos, desigualdades e exclusões de grupos minoritários.

Mais do que a crítica da sublimação da desigualdade e dos conflitos, que aquelas idéias e representações que muitos crêem definirem o Brasil e sua cultura, operam, creio que, a pressão política que movimentos sociais e que parte da sociedade civil exercem, atualmente, sobre a cena pública brasileira, sobretudo, por meio da reivindicação por políticas afirmativas no tocante a inclusão de novos agentes sociais a determinados espaços e funções, coloca em xeque algo bem mais importante, do ponto de vista político. A meu ver, são as tradicionais formas sociais de convivência, seu funcionamento político e social, sua homogeneidade étnica, de gênero e de classe, que é duramente colocado sob suspeição e crítica. Por conseguinte, as instituições que mediam as formas de convivência são, em igual modo, problematizadas; criticadas em sua função política e reivindicadas em sua expansão e aperfeiçoamento democrático.

A problematização das formas sociais de convivência, a introdução das diferenças e a geração de novos conflitos no seio dos espaços públicos, mais do que argumentos acerca de “justiça social” ou “reparação histórica”, são o que, de fato, me convencem acerca da relevância política das cotas, sejam elas raciais ou sociais, para o combate ao preconceito e a desigualdade. Desse ponto de vista não se deveria esperar até o ensino superior para introduzir políticas de inclusão institucional.

Creio que argumentos, sequiosos por sustentar as políticas de cotas para o acesso ao ensino superior, que enfatizam o caráter equalizador da fratura social e de reparação histórica, arriscam-se, desde sua formulação, a assentar sobre as universidades, para usar expressão do amigo Caio Padilha, “um estranho podium”, destinado a coroar aqueles que outrora naufragavam nos vestibulares. Parece-me desonesto e um equívoco fazer das políticas de cotas um tipo de política voltada para “salvar pessoas que não passam no vestibular”. Além do mais, precipita-se uma confusão imprudente entre políticas de cota e políticas educacionais.

Nesse sentido, esquece-se que uma política de combate ao preconceito e a desigualdade deve ir muito mais além de porcentagem de vagas ou bônus nas notas para minorias e/ou “classes desfavorecidas”. Se entendermos por política o mesmo que o filósofo francês Jacques Rancière (1996), portanto, como uma modalidade de ação cuja tarefa é provocar a redefinição dos espaços, das maneiras de vê-los e organizá-los. De tal modo que sujeitos e diferenças, outrora sufocadas e escamoteadas, tornem-se visíveis e audíveis enquanto seres políticos capazes de falar, intervir e atuar em conjunto a propósito das características e possibilidades do espaço social em que vivem. Então, não basta reservar vagas e auxiliar a entrada das minorias. Isso não seria política, mas, antes, no vocabulário conceitual do autor francês, o que este define como polícia: a distribuição das posições, da visibilidade dos sujeitos em termos de suas propriedades – as semelhanças e as diferenças étnicas, culturais, religiosas, biológicas, classe etc.

Uma política de cotas audaciosa é aquela que, com a mesma medida e com o mesmo ardor democrático, que põe em questão a configuração do espaço social – quem está presente? Quem está fora? – pergunta-se, igualmente, acerca da configuração do espaço epistemológico que os currículos e as bibliografias dos cursos superiores fabricam – qual o lugar nesses currículos reservado aos autores (as) negros e de outras minorias? A recusa e o esquecimento das produções intelectuais e artísticas dos negros, das mulheres, dos povos colonizados, enfim, dos subalternos em geral, não é de modo algum uma seleção intelectual segundo o mérito de cada um, mas um silenciamento.

Reivindicar e promover a experimentação e o conhecimento de outras tradições intelectuais, artísticas e filosóficas - que não as que se convencionou intitular de Ocidental -, de outros corpus de conhecimentos, significa inserir a perspectiva dos “ausentes da história”, por meio de suas próprias produções e ângulo, como vemos nos livros de W. E. B. Du Bois ou Franz Fannon. De sorte que a ótica e as produções dos excluídos dos espaços consagrados ao argumento e ao espírito façam-se visível e audível. E, desse modo, por meio dos conflitos, dos desentendimentos, das idéias e óticas distintas, novas relações com as diferenças sejam instituídas.

Alyson Thiago F. Freire

Referência:

RANCÌERE, Jacques. O desentendimento: Política e Filosofia. São Paulo. 34, 1996.

8 comentários:

  1. É, e o interessante disso é que a "mass media" não promove a discussão do tema da política de cotas, ela só comunica. Deve ser por isso essa 'histeria coletiva' nos discursos conservadores. Outra coisa relacionada às cotas é que elas, eu acho, deveriam ter um caráter provisório e que o Ministério da Educação deveria tomar medidas e dar prazos para um reforma estrutural-cognitiva da rede pública de ensino, e que essas políticas de cotas sejam apenas uma medida emergencial para nossa sociedade. Aliás, a universidade não ensina a ler e a escrever.

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  2. Ah, e é o que você justamente propoe ai quando fala sobre a audácia possível dessa política.

    Belo texto!

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  3. Realmente pouco se ver falar da discussão sobre os curriculos e as bibliografias, e mesmos atividades de extensão em comunidades composta pelas minorias, etc. Os números, as percetagens, as estatisticas, enfim, a enfase no quantitativo acaba, muitas, a encobrir a pertinencia da discussão acerca dos aspectos qualitativos.

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  4. Pois é, Rodrigo, também compartilho que as cotas sejam uma medida provisória, acompanhada, obviamente, de investimentos maciços para reeguer a escola pública. Todavia, as cotas raciais, creio que elas cumprem um papel essencial o qual devem, como pressuposto de uma democracia rica, ser estimulado. Elas proporcionam a convivência com as diferenças, a abertura ao não-familiar, etc. Isso me parece fundamental para quebrar pressuposições, por isto, seu caráter deve ser, talvez, permanente.

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  5. Olá Alyson,
    bom texto, e ainda melhor, a iniciativa do debate, mas um acompanhamento mais atento dos movimentos étnicos verificaria que eles estão sim preocupados com os currículos e com as biografias, é só perceber os embates nos colegiados dos cursos de história pela abertura de disciplinas que contem uma "outra" história (da áfrica, dos quilombos, dos que resisitiram, dos indígenas...), além dos colegiados dos cursos ligados a educação, que se exige disciplinas que garantem a educação do campo, indígena... e além da diversidade e incentivo a quantidade de publicações sobre a história indígena e do negro brasileiro ou presente neste recorte territorial... Somado ao incentivo a pesquisas que exponham esta relação diversa presente em nossa sociedade... Somado aos cursinhos pré-vestibulares para jovens de origem populares bancados pelas Universidades e aos incentivos em educação básica através de várias políticas públicas (MAIS Educação, DDE...)...

    Acredito que estamos num percurso interessante e audasioso, embora bastante silensioso ainda bastante lento...

    Parabéns!

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  6. Valeu pela presença e pelos comentários Dennys... Evidentemente, as iniciativas e o debate pela inserção de conhecimentos outros existem, tanto no mov. sociais, nas universidades e Escola, inclusive, prevista, ainda que vagamente, nos PCN's em geral. Todavia, como você mesmo afirmou, é ainda algo "bastante silencioso e lento". Parece-me que o foco entre as reivindicações por cotas e similares e as reivindicações por curriculos mais plurais é um tanto quanto desequilibrado, tanto no que se refere a visibilidade política quanto na energia política mobilizada.

    Além do mais, Dennys, preocupa-me um pouco que a discussão sobre os curriculos e as bibliografias sejam, quase que automaticamente, sempre ligadas a idéia de uma "outra" história da África, dos indigenas, numa ênfase da noção de correção do passado e da historiografia. Também acho que essa discussão de modo algum deve se limita ao campo da história. Ora, na filosofia, na literatura, na sociologia, na geografia, onde estão as elaborações das culturas negras, por exemplo?


    Sob o viés da inclusão da história dos resistentes e da expurgação dos elementos etnocentricos da História Oficial, talvez, esconda-se uma especie de folclorização do outro, que em vez de proporcionar o estudo e o aprendizado, em toda suas consequencias, do ponto de vista do outro, transforma-o em um arquivo, em uma peça de museu, em algo paralisado no passado, ou como muitos gostam em uma cultura, em uma "outra" história do "outro" dedicada a fins livrescos.

    O debate está ocorrendo e, creio, é preciso intensificá-lo em suas sutilezas. Abraços,e espero, sempre que pudures escrever, ler seus comentários por aqui. Até mais.

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  7. Eu parafraseio o Slavoj Zizek de um post mais pra cima e diria pra os leitores desse blog que as cotas são o novo ópio da pretensa esquerda brasileira.

    As lutas sociais estão fora de moda, lutar pela cidadania está fora de moda, ninguém mais sabe o que é esquerda e o que é direita e o pessoal que vive em busca de uma causa qualquer pra transofrmar em bandeira achou a tal da igualdade racial (o que é raça ninguém está disposto a questionar). Sai a luta social, entra a igualdade racial.

    Eu não diria, como você, que os beneficiários das cotas fazem parte de "outras tradições intelectuais, artísticas e filosóficas - que não as que se convencionou intitular de Ocidental". Fora os índios, que realmente têm outras tradições e têm problemas sérios para entrar nas políticas geradas para a população brasileira, os pobres e os negros, os que você chama de subalternos, fazem bastanteparte da cultura brasileira. É muito cômodo colocá-los numa redoma à parte para que possamos exercer o nosso volutarismo entusiasmado, para que achemos que estamos mudando alguma coisa na sociedade. Eles são nós... nós somos eles. Nós quem, mesmo, hein?

    Entramos numa obscura era de excesso de identidade, onde tudo o mais deixou de fazer sentido. Saudades da cidadania...

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  8. Alyson,

    Sobre a publicização desigual da batalha pró-cotas e a geração de bibliografia e currículos, dentros outros pontos, eu não posso afirmar do mesmo modo e tom... Pois, muitas vezes, vemos aquilo que queremos ver, por exemplo, eu mesmo estou ingressando no Forum Permanente da Diversidade e da Educação para as relações étnico racial do Estado do RN, p discutir e ver modos de implementar a lei 10639 e a lei 11645/2008, q irá tratar justamente do ensino desta "outra" história...

    e sobre esta "outra", apesar de alguns discursos a colocarem como "correção", eu não acredito deste modo, e ainda, embora o tome este viés pela nutrição do revanchismo, eu não tomo desta forma, mas sim, como o modo mesmo de se contar uma história diferente, o olhar é q diferencia...

    voltando ainda ao primeiro parágrafo, é necessário perceber q em período de hegemonia do conceito de democracia ser a convivência e a cordialidade entre as diferenças, um bom combate cortês, se dá pela escolha do desafiado de escolher as armas, e este é o problema... qm tá escolhendo as armas é o discurso que recorta o debate real a ser travado, q é o da diversidade, do colorimento da sociedade, contra a segregação, onde a negritude é maioria no guarapes e na penitenciária e o branco é maioria na candelária e na universidade... a identidade se dá primeiro pela identificação, depois pela reiteração, podendo chegar ao totalitarismo, a cegueira e ao revanchismo...

    não deve ser esta nossa ousadia...
    Dennys Lucas

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