quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Lula manifesta apoio aos militantes LGBT*




A conferência LGBT da América Latina e Caribe (V ILGA-LAC), que desde o dia 26/01, terça-feira, está reunida em Curitiba (PR), contou em seu primeiro dia, com o apoio do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva. Em sua saudação, Lula reiterou seu apoiou à defesa dos direitos LGBT e o combate a homofobia.

Em mensagem ao presidente da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, Toni Reis, o presidente Lula afirma que a luta contra a intolerância e a discriminação tem norteado sua gestão desde o início do primeiro mandato. Além do mais, o presidente da República aproveitou para tecer considerações sobre as ações governamentais de combate à homofobia e o Plano Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH-3), que, entre outras coisas, defende a união civil entre pessoas do mesmo sexo.

A abertura do evento ficou à cargo do ministro da Secretária de Direitos Humanos, Paulo Vanucchi, que em seu discurso, por sinal bastante aplaudido, afirmou que “o movimento LGBT é o mais organizado do Brasil”, ao lembrar o fato deste já ter alcançado o feito de realizar 27 conferências estaduais. Com respeito ao PNDH-3, Vanucchi ressaltou sua importância e a relevância de “no vigésimo primeiro ano de redemocratização do Brasil”, um documento federal que prevê o incentivo de ações como a união civil e a adoção de crianças por casais homoafetivos.

Ainda quanto o PNDH-3, o ministro ressaltou as dificuldades a serem superadas, ainda mais quando estas “não vêem à luz, ficam cobertas pelo manto da hipocrisia”. O discurso de Vanucchi foi encerrado sob aplausos entusiasmados.



*Nota enviada por amigos militantes lá presentes.

Mais informações: http://www.ilgalac.grupodignidade.org.br/port/index.php

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

A história do Haiti é a história do racismo




por Eduardo Galeano, autor uruguaio do conhecido livro As veias abertas da América Latina, publicada em 1971. Aproveitem o texto!


A democracia haitiana nasceu há um instante. No seu breve tempo de vida, esta criatura faminta e doentia não recebeu senão bofetadas. Era uma recém-nascida, nos dias de festa de 1991, quando foi assassinada pela quartelada do general Raoul Cedras. Três anos mais tarde, ressuscitou. Depois de haver posto e retirado tantos ditadores militares, os Estados Unidos retiraram e puseram o presidente Jean-Bertrand Aristide, que havia sido o primeiro governante eleito por voto popular em toda a história do Haiti e que tivera a louca ideia de querer um país menos injusto.

O voto e o veto

Para apagar as pegadas da participação estadunidense na ditadura sangrenta do general Cedras, os fuzileiros navais levaram 160 mil páginas dos arquivos secretos. Aristide regressou acorrentado. Deram-lhe permissão para recuperar o governo, mas proibiram-lhe o poder. O seu sucessor, René Préval, obteve quase 90 por cento dos votos, mas mais poder do que Préval tem qualquer chefete de quarta categoria do Fundo Monetário ou do Banco Mundial, ainda que o povo haitiano não o tenha eleito nem sequer com um voto.

Mais do que o voto, pode o veto. Veto às reformas: cada vez que Préval, ou algum dos seus ministros, pede créditos internacionais para dar pão aos famintos, letras aos analfabetos ou terra aos camponeses, não recebe resposta, ou respondem ordenando-lhe:

– Recite a lição. E como o governo haitiano não acaba de aprender que é preciso desmantelar os poucos serviços públicos que restam, últimos pobres amparos para um dos povos mais desamparados do mundo, os professores dão o exame por perdido.

O álibi demográfico

Em fins do ano passado, quatro deputados alemães visitaram o Haiti. Mal chegaram, a miséria do povo feriu-lhes os olhos. Então o embaixador da Alemanha explicou-lhe, em Porto Príncipe, qual é o problema:

– Este é um país superpovoado, disse ele. A mulher haitiana sempre quer e o homem haitiano sempre pode.

E riu. Os deputados calaram-se. Nessa noite, um deles, Winfried Wolf, consultou os números. E comprovou que o Haiti é, com El Salvador, o país mais superpovoado das Américas, mas está tão superpovoado quanto a Alemanha: tem quase a mesma quantidade de habitantes por quilômetro quadrado.

Durante os seus dias no Haiti, o deputado Wolf não só foi golpeado pela miséria como também foi deslumbrado pela capacidade de beleza dos pintores populares. E chegou à conclusão de que o Haiti está superpovoado... de artistas.

Na realidade, o álibi demográfico é mais ou menos recente. Até há alguns anos, as potências ocidentais falavam mais claro.

A tradição racista

Os Estados Unidos invadiram o Haiti em 1915 e governaram o país até 1934. Retiraram-se quando conseguiram os seus dois objetivos: cobrar as dívidas do Citybank e abolir o artigo constitucional que proibia vender as plantations aos estrangeiros. Então Robert Lansing, secretário de Estado, justificou a longa e feroz ocupação militar explicando que a raça negra é incapaz de governar-se a si própria, que tem "uma tendência inerente à vida selvagem e uma incapacidade física de civilização". Um dos responsáveis pela invasão, William Philips, havia incubado tempos antes a ideia sagaz: "Este é um povo inferior, incapaz de conservar a civilização que haviam deixado os franceses".

O Haiti fora a pérola da coroa, a colônia mais rica da França: uma grande plantação de açúcar, com mão-de-obra escrava. No Espírito das leis, Montesquieu havia explicado sem papas na língua: "O açúcar seria demasiado caro se os escravos não trabalhassem na sua produção. Os referidos escravos são negros desde os pés até à cabeça e têm o nariz tão achatado que é quase impossível deles ter pena. Torna-se impensável que Deus, que é um ser muito sábio, tenha posto uma alma, e sobretudo uma alma boa, num corpo inteiramente negro".

Em contrapartida, Deus havia posto um açoite na mão do capataz. Os escravos não se distinguiam pela sua vontade de trabalhar. Os negros eram escravos por natureza e vagos também por natureza, e a natureza, cúmplice da ordem social, era obra de Deus: o escravo devia servir o amo e o amo devia castigar o escravo, que não mostrava o menor entusiasmo na hora de cumprir com o desígnio divino. Karl von Linneo, contemporâneo de Montesquieu, havia retratado o negro com precisão científica: "Vagabundo, preguiçoso, negligente, indolente e de costumes dissolutos". Mais generosamente, outro contemporâneo, David Hume, havia comprovado que o negro "pode desenvolver certas habilidades humanas, tal como o papagaio que fala algumas palavras".

A humilhação imperdoável

Em 1803 os negros do Haiti deram uma tremenda sova nas tropas de Napoleão Bonaparte e a Europa jamais perdoou esta humilhação infligida à raça branca. O Haiti foi o primeiro país livre das Américas. Os Estados Unidos haviam conquistado antes a sua independência, mas tinha meio milhão de escravos a trabalhar nas plantações de algodão e de tabaco. Jefferson, que era dono de escravos, dizia que todos os homens são iguais, mas também dizia que os negros foram, são e serão inferiores.

A bandeira dos homens livres levantou-se sobre as ruínas. A terra haitiana fora devastada pela monocultura do açúcar e arrasada pelas calamidades da guerra contra a França, e um terço da população havia caído no combate. Então começou o bloqueio. A nação recém nascida foi condenada à solidão. Ninguém lhe comprava, ninguém lhe vendia, ninguém a reconhecia.

O delito da dignidade

Nem sequer Simón Bolívar, que tão valente soube ser, teve a coragem de firmar o reconhecimento diplomático do país negro. Bolívar havia podido reiniciar a sua luta pela independência americana, quando a Espanha já o havia derrotado, graças ao apoio do Haiti. O governo haitiano havia-lhe entregue sete naves e muitas armas e soldados, com a única condição de que Bolívar libertasse os escravos, uma ideia que não havia ocorrido ao Libertador. Bolívar cumpriu com este compromisso, mas depois da sua vitória, quando já governava a Grande Colômbia, deu as costas ao país que o havia salvo. E quando convocou as nações americanas à reunião do Panamá, não convidou o Haiti mas convidou a Inglaterra.

Os Estados Unidos reconheceram o Haiti apenas sessenta anos depois do fim da guerra de independência, enquanto Etienne Serres, um gênio francês da anatomia, descobria em Paris que os negros são primitivos porque têm pouca distância entre o umbigo e o pênis. Por essa altura, o Haiti já estava em mãos de ditaduras militares carniceiras, que destinavam os famélicos recursos do país ao pagamento da dívida francesa. A Europa havia imposto ao Haiti a obrigação de pagar à França uma indenização gigantesca, a modo de perdão por haver cometido o delito da dignidade.

A história do assédio contra o Haiti, que nos nossos dias tem dimensões de tragédia, é também uma história do racismo na civilização ocidental.



Retirado do: http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/eduardo-galeano-a-historia-do-haiti-e-a-historia-do-racismo/

Entrevista Slavoj Zizek:




''A ecologia é o ópio do povo''
Entrevista com Slavoj Zizek



As intervenções do filósofo esloveno Slavoj Zizek são sempre promessas, cumpridas na maioria das vezes, diga-se de passagem, de idéias que rebentam os lugares-comuns e a diplomacia dos intelectuais. Provocador e controverso, Zizek é hoje um filósofo "superstar", sempre convidado pelos grandes meios de comunicação para destilar suas opiniões. À despeito da consistência e clareza dessas, ler Zizek é sempre divertido.


A entrevista foi publicada por Magis, Revista da Unisinos, no. 05, dez 2009-jan 2010.

Eis a entrevista.

O senhor tem insistido que tanto o multiculturalismo quanto os movimentos ecológicos não abordam os problemas políticos verdadeiramente agudos e relevantes para o mundo. Por quê?

O multiculturalismo passa por cima dos problemas políticos verdadeiramente relevantes e agudos quando os reduz a meros problemas culturais. Quando lidamos com um problema real, tanto sua designação ideológica como sua percepção como tal introduz uma mistificação invisível. Digamos que a tolerância designa um problema real. É claro, sempre me perguntam: “Como você pode concordar com a intolerância com os estrangeiros, estar de acordo com o antifeminismo ou ao lado da homofobia?”. Aí reside a armadilha. Evidentemente, não estou de acordo. Ao que me oponho é à nossa percepção automática do racismo como mero problema de tolerância. Por que tantos problemas atualmente são percebidos como problemas de intolerância, em vez de serem entendidos como problemas de iniquidade, exploração e injustiça? Por que o remédio tem de ser a tolerância em vez de a emancipação, a luta política, ou ainda a luta política armada? A resposta imediata está na operação básica do multiculturalismo liberal: “a culturização da política”. As diferenças políticas, diferenças condicionadas pela iniquidade política ou a exploração econômica, se naturalizam como simples diferenças “culturais”. A causa desta culturização é o retrocesso, o fracasso das soluções políticas diretas, tais como o estado social. A tolerância é seu ersatz ou sucedâneo pós-político. A ideologia é, neste preciso sentido, uma noção que, enquanto designa um problema real, dilui uma fronteira de separação crucial.

E quanto à ecologia?

É precisamente no terreno da ecologia que podemos delinear a demarcação entre a política da emancipação e a política do medo na sua forma mais pura. De longe, a versão predominante da ecologia é a da ecologia do medo – medo da catástrofe, humana ou natural, que pode perturbar profundamente ou mesmo destruir a civilização humana. Essa ecologia do medo tem todas as oportunidades de se converter na forma ideológica predominante do capitalismo global, um novo ópio das massas que sucede o da religião. Assume a função fundamental da religião, aquela de impor uma autoridade inquestionável que estabelece todo limite. Apesar de os ecologistas exigirem permanentemente que mudemos radicalmente nossa forma de vida, é precisamente isso que subjaz a essa exigência no seu oposto, isto é, uma profunda desconfiança em relação à mudança, em relação ao desenvolvimento, em relação ao progresso: cada transformação radical pode conter a consequência inestimada de detonar uma catástrofe. É exatamente essa desconfiança que converte a ecologia em um candidato ideal para tomar o lugar de uma ideologia hegemônica, pois faz eco da desconfiança em relação aos grandes atos coletivos.

Afinal, de qual natureza estamos falando?

A “natureza” como condição de domínio, de reprodução balanceada, de implantação orgânica dentro da qual intervém a humanidade com a sua desmedida, destruindo brutalmente sua moção circular, não é outra coisa que a fantasia do ser humano; a natureza já é de fato uma “segunda natureza”, seu equilíbrio é sempre secundário, trata-se de uma tentativa de negociar um “hábito” que restauraria alguma ordem depois das intervenções catastróficas. A lição que devemos colher é a de que, se não podemos estar seguros de qual será o resultado final das intervenções humanas na biosfera, uma coisa é certa: se a humanidade detivesse abruptamente sua imensa atividade industrial e deixasse que a natureza tomasse seu curso equilibrado, o resultado seria uma ruptura total, uma catástrofe inimaginável. A “natureza” na Terra está tão adaptada às intervenções humanas, a “contaminação” humana está a tal ponto incluída no frágil e instável equilíbrio da reprodução “natural”, que a interrupção intempestiva da ação humana causaria um desequilíbrio catastrófico. É isso precisamente que demonstra que a humanidade não tem como retroceder: não só não há um “grande Outro” (uma ordem simbólica autocontida que seja a última garantia do significado), assim como também não existe uma natureza que contenha uma ordem equilibrada ou de autoprodução e cujo equilíbrio tenha sido perturbado e descarrilado pela intervenção humana desbalanceada. Não só o grande Outro tem sido “gradeado”, a natureza também.

Existe o mito fundamental segundo o qual o liberalismo é o lar da democracia. É a democracia uma produção do liberalismo?

Não, todas as características que hoje identificamos com a democracia liberal e com a liberdade (sindicatos, sufrágio universal, educação universal e gratuita, liberdade de imprensa etc.) foram obtidas pelas classes mais baixas em uma longa e difícil luta no transcurso do século XIX. Tais lutas estavam longe de ser uma consequencia “natural” das relações capitalistas. Lembra a lista de demandas que conclui o Manifesto Comunista: a maioria delas – à exceção da abolição da propriedade privada dos meios de produção, precisamente como resultado das lutas populares – hoje é amplamente aceita nas democracias “burguesas”. Outro aspecto que se ignora constantemente: hoje, a igualdade entre brancos e negros se celebra como parte do “sonho americano”, se percebe como um axioma ético-político. Sem dúvida, nos anos 1920 e 1930 do século passado, os comunistas dos Estados Unidos foram a única força política que argumentou a favor da igualdade absoluta entre as etnias. Aqueles que defendem a existência de um vínculo natural entre o liberalismo e a democracia estão equivocados.

Pode a política ser sublime em uma era pós-ideológica?

A tendência geral é para o ridículo. A figura do primeiro-ministro italiano, Silvio Berlusconi, é aqui fundamental, visto que hoje a Itália é efetivamente um tipo de laboratório experimental do nosso futuro. Se o cenário político é dividido entre um tecnocratismo permissivo-liberal e um fundamentalismo populista, Berlusconi tem o grande mérito de ser ambos ao mesmo tempo. É sem dúvida esta combinação que faz dele imbatível, pelo menos em um futuro próximo: a histórica “esquerda” italiana agora resignadamente o aceita como destino. Essa aceitação silenciosa de Berlusconi como destino é talvez o aspecto mais triste de seu reinado. Seus atos são cada vez mais inescrupulosos: ele não só ignora ou politicamente neutraliza juridicamente as investigações sobre suas atividades criminosas para impulsionar seus interesses comerciais privados, como também busca minar sistematicamente a base da dignidade do chefe de Estado. A dignidade clássica da política é baseada na sua elevação acima do jogo de interesses específicos na sociedade civil: a política é "alienada" da sociedade civil, apresenta-se como a esfera ideal do cidadão, em contraste com o conflito de interesses que caracteriza a burguesia como egotista. Berlusconi efetivamente acaba com essa alienação: hoje na Itália, a base burguesa impiedosa e abertamente explora o poder estatal como um meio para a defesa dos seus interesses econômicos. E lava a roupa suja de seus conflitos maritais privados à maneira de um reality show vulgar, diante de milhões de espectadores sentados nos seus sofás. A aposta de Berlusconi nas suas indecentes vulgaridades está, naturalmente, em que as pessoas vão se identificar com ele, na medida em que ele aprova a mítica imagem ampliada da mídia italiana: “Eu sou um de vocês, um pouco corrupto, com problemas com a lei, tenho problemas com a minha mulher, porque outras mulheres me atraem...” Mesmo sua grandiosa promulgação como um grande e nobre político, il cavalliere, é mais como uma ópera ridícula do pobre homem com sonho de grandeza. E, no entanto, essa aparência de "um homem normal como todos nós” não deve nos iludir: por baixo da máscara desajeitada há um poder estatal que funciona com eficiência impiedosa.

sábado, 23 de janeiro de 2010

Um mundo tenebrosamente transparente




Houve tempos em que os europeus tremiam de horror ante a nudez. Inclusive, não custa lembrar, quando por aqui meteram os pés, e principalmente as mãos, escandalizaram-se com o “hábito” dos índios de andarem por aí com as “partes pudendas” à mostra. O que, com efeito, fizeram-nos, aliás, interrogar o Papa e os sábios da época, se aquela gente "despudorada" era de fato humana.

Pois bem, hoje, em conseqüência do atentado frustrado de um jovem nigeriano que tentou explodir um avião na rota Amsterdã-Detroit, os outrora pudicos europeus, se quiserem viajar, terão de expor sua nudez, como resultado da nova medida de segurança aérea, às máquinas de scanner corporal – body scanners. Essas máquinas, ou melhor, aparelhos são capazes de ver através das roupas, de por inteiramente o corpo á nu, em seu escrutínio a procura de artefatos ameaçadores à segurança, sejam eles uma dinamite ou um cortador de unha. Holanda, Inglaterra e França já aderiram a tal máquina.

Evidentemente, a maneira pela qual nos relacionamos com a nudez, a nossa e a do outro, é histórica. Norbert Elias (1993) enfatiza precisamente que a marcha do desenvolvimento histórico do ocidente moderno é definida pelo progressivo incremento de um controle corporal cada vez mais individualizador e racional. Trata-se, diz-nos Elias, de controlar e disciplinar as funções corporais, as emoções, os gestos, enfim, de criar sobre estes fronteiras, regras, silêncios, coberturas, para que assim, evite-se o embaraço e a exposição ao olhar do outro.

O que vemos atualmente na Europa e nos Estados Unidos, não significa uma pausa ou a derrocada desse processo histórico inapelável, o qual narra-nos, com o brilho e a clareza dos grandes autores, o sociólogo alemão. Ao contrário, são apenas novas práticas de controle - amparadas em novas tecnologias políticas e justificadas em menção a outros valores - de um mesmo processo. A naturalidade com que as pessoas aceitam tais procedimentos é testemunha da razoabilidade do argumento. Ora, o essencial continua a perdurar; o controle da imprevisibilidade dos corpos e o medo e a insegurança perante o mistério do corpo do outro.

O corpo de cada um é um continente de obscuridades. E, é exatamente isso que representa a ameaça. Não é por acaso, que Michel Foucault enfatizou em sua obra, como traço singular do exercício do poder na modernidade, a dimensão do olhar, a ótica que lança sobre alguma matéria sua luz a fim de identificar, corrigir, ameaçar. O olhar esquadrinhador do médico, do cientista e o seu objeto, do panopticon e seus presos, etc. O exercício do poder na modernidade é, sobretudo, uma operação sistemática de desvelamento.

Em nome da segurança – de quem? - e da prevenção contra a ação de organizações malévolas, somos todos definidos como suspeitos, uns mais do que outros, é verdade, mas ainda assim todos nós. Bastante tenebrosa essa nova relação, que, aos poucos, mas a passos largos, vem se desenhando entre cidadãos e Estado. Cade vez menos o Estado requer a nossa voz, a nossa palavra ativa, a vivacidade de nossa agência e participação na esfera de deliberação e decisões públicas, e cada vez mais exige nossa cumplicidade e submissão canina em ceder nossos corpos, nossos dados e informações às perícias, registros, fichamentos, etc. Nossa epiderme e nudez interessa mais ao Estado do que nossa inteligência.

Antes de encerrar, vale lembrar para aqueles, não amantes do erotismo pós-moderno, que as autoridades, num gesto valoroso de romantismo, permitirão a opção, para os que se sentirem incomodados com a frigidez e o superficialismo da máquina, do “apalpamento”. Cada dia mais me convenço que há mais razão em temer aqueles que nos dizem estar nos protegendo do que os terroristas.

Alyson Thiago F. Freire

Referência:

ELIAS, Norbert. 1993. O Processo Civilizador, vols. 1 e 2. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Haiti, ou o Hades da (Bio) política



A tragédia que se abateu sobre o já combalido Haiti, transformou este pequeno país de pouco mais de 27 mil quilômetros quadrados em um assombroso Hades. Nos últimos dias, imagens de cadáveres amontoados, gritos e gemidos entrecortados, destroços, dor e destruição, atingem-nos constantemente às retinas. Não foram somente as casas, os prédios, enfim, a infra-estrutura física do país que foi arruinada. Para os sobreviventes, o suplício urbano, pós-terremoto, que insistimos para fins didáticos de chamar Haiti, significa também o soterramento de sua geografia emocional, dos mapas mentais que os permitiam reconhecerem a si mesmos na cidade e ela própria. Seus trajetos são campos da morte, agora.

O cotidiano também ruiu. Toda solidez e recorrência da vida cotidiana, todos os marcos de orientação que conferiam consistência à vida, às ações e ao pensamento, desvaneceram. A já frágil economia institucional do Haiti foi literalmente posta à abaixo. Se admitirmos como verdadeiro, como sustenta a antropóloga Mary Douglas (1998), que as decisões dos indivíduos, principalmente as relativas à vida e à morte, não são tomadas por estes isoladamente, mas sim em função de um “pensamento institucional” compartilhado, então, o que acontece quando a facticidade das instituições – justiça, governo, norma jurídica –, isto que confere um plano de entendimento sobre a vida, as ações e a realidade social desaba e tudo o que move os indivíduos é a sobrevivência?

Segundo a antropóloga britânica, as situações de crise e instabilidade extrema, como a guerra, a fome ou um desastre natural como vemos hoje no Haiti, não significam uma espécie de revogação do contrato social, um retorno ao estado de natureza no qual todas as mediações culturais e padrões morais e de justiça seriam automaticamente dispensados e esquecidos. Pelo contrário, diz-nos a antropóloga: “O comportamento, numa situação de crise, depende de quais padrões de justiça foram internalizados, do que as instituições legitimaram” (DOUGLAS, 1998: 125).

As instituições possuem uma função lógica, moral e cognitiva. Para Mary Douglas, elas são a base para a operação prática da cognição humana, na medida em que é em função delas, que se assegura o compartilhamento e o reconhecimento dos esquemas conceituais, de analogias e moralidades mobilizadas pelos indivíduos para suas decisões, interpretações, etc. A economia institucional, isto é, o funcionamento de seus valores, normas, hierarquias, classificações, princípios, interdições, ritos, funções, implica necessariamente, pelas próprias características das instituições enquanto tais, em uma economia cognitiva, a qual é mais ou menos interiorizada na mente dos indivíduos, através da conformação, efetivada pelas instituições sociais, de um certo consenso sobre a apreensão das coisas, ou, para utilizar a expressão de Durkheim, um “conformismo lógico” acerca das categorias do entendimento. Por isso, a economia institucional, sedimentada no íntimo dos indivíduos, por operar como base cognitiva ou gnosiológica interiorizada, não é removível, por inteira, facilmente de um momento para outro, por mais extremo e furioso que seja o golpe.

Ainda que a economia institucional esteja, conscientemente ou inconscientemente, funcionando na vida dos haitianos, mediando suas relações sociais, seus juízos e suas escolhas sobre como manter a continuidade da existência, ainda que na mais dura consternação. Entretanto, seria ingenuidade não enxergar que, a despeito do seu entrelaçamento com a atividade cognitiva e moral dos indivíduos, o colapso literal das instituições implica uma nova condição, a qual está incluída na própria norma; o estado de exceção. As conseqüências do terremoto legaram aos haitianos, ou melhor, aos sobreviventes, pois não existe mais haitianos, um espaço de exceção que se projeta, inclusive, sobre seus corpos; transformando-os em qualquer coisa ou figura que vaga, que perambula entre restos; desnorteados e preocupados em demasia com as condições vitais de sobrevivência para conseguir compreender o que, como efeito dessa tragédia, eles passaram a ser. É esta nova condição, ou seja, a de sobrevivente, que urge ser pensada.

A incerteza, a busca sem garantia de êxito por comida, remédios e água, os mantém suspensos em uma zona intermediária, cinzenta como os destroços, entre a vida e a morte. Depois da dor, do choque inicial e do desespero pela morte de parentes e amigos, a preocupação recai sobre as condições sanitárias, as doenças contagiosas, a alimentação e a segurança, constantemente em estado de alerta por causa das disputas territoriais entre as gangues. Sob tais circunstâncias, pós-terremoto, a condição dos haitianos é de sobreviventes; uma massa, composta de silhuetas reduzidas à reunião de suas funções físicas.

O controle político sobre tal massa não diz respeito à submissão aos tradicionais aparelhos de poder - justiça, polícia, governo -, pois estes pressupõem a existência dos indivíduos como cidadãos, como sujeitos jurídicos. O que temos no desolado Haiti, são sobreviventes; sobre estes o controle político incrementa-se por outros meios. Os “haitianos” estão abandonados a sua própria violência e biologia. Nessas condições todas as garantias e proteções jurídicas são triviais. As conseqüências do terremoto delinearam nos corpos dos sobreviventes um espaço de exceção.

O humanismo de paliativos tardios da ajuda internacional é a única coisa que restou de política no Haiti. Mas é precisamente aí que reside um poder decisivo sobre os “haitianos”. Amiúde, esquecemos que entre os dedos de um burocrata tremula algo cuja letalidade e a ameaça pública pode ser tão devastadora quanto um terremoto. A posse das vidas, ou melhor, da sobrevivência dos que lá permaneceram está nas mãos dos organismos e agências internacionais, mais precisamente em suas canetas. Por assim dizer, esses organismos internacionais e seus burocratas passam a ter um poder de vida e de morte, de “fazer viver e deixar morrer”. Um poder sobre a vida, mas não a vida no sentido de seus direitos, protegida pelo conceito de cidadão, a vida constituída na polis. Antes, é um controle sobre o que resta da vida que é desfigurada das garantias e qualidades que tornam alguém um sujeito jurídico e político, ou seja, a vida reduzida ao seu sentido mais bruto. Um poder que se exerce sobre não-sujeitos.

A vida despojada de todo valor político, subsumida das proteções do conceito de cidadania, do direito, reduzida a pura condição biológica, é o que Giorgio Agamben, filósofo italiano (2007) chama de a “vida nua”. Quando o universo das expectativas é inteiramente voltado para o magro e esquálido horizonte da sobrevivência, do mínimo biológico, é assustador concluir que mesmas nas condições mais desesperadoras, onde a dignidade é quase por inteira perdida, ainda aí, na degradação e no terror, há um “resto” de vida sobre o qual é definido todo um espaço político. Sobre os corpos dos sobreviventes prolonga-se um espaço de exceção que institui em cada um uma zona de indistinção entre o humano e o animal, reduzindo seu estatuto ontológico a qualquer coisa de residual entre o biológico, o político, o social e o inumano.

Como Orfeu, que desceu à mansão dos mortos – Hades - para resgatar sua amada Eurídice, os sobreviventes da catástrofe do Haiti estão nesta zona de indiscernibilidade entre a vida e a morte, nem vivos nem mortos. Como nos campos de concentração, no devastado Haiti, a vida está implicada como um espaço de exceção. Nesse terreno não residem sujeitos jurídicos, senão meras existências, que sob o ângulo da vida nua, são efetivamente extermináveis.

Alyson Thiago F. Freire

Referências:

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte. UFMG, 2007.

DOUGLAS, Mary. Como as instituições pensam. São Paulo. USP, 1998.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Por uma Política de Cotas audaciosa

As políticas de ação afirmativa ocupam mais do que nunca, no Brasil, o cerne da visibilidade pública. Elas são responsáveis pela criação de novos conflitos que cada vez mais ganham espaço no debate político e intelectual do país. A criação de conflitos, a manifestação do dissenso, é o alimento, a energia vital da democracia, a condição mesma para que esta não se torne um conceito, um objeto de saber, ou uma coisa da qual simplesmente falamos para defender, profetizar, elogiar, justificar, etc.

Não é novidade, em nossa história, que as mudanças sociais de tendência niveladora e democratizante sejam, quase sempre, recebidas com um sentimento de preocupação pelos setores conservadores de nossa sociedade. Principalmente quando essas são acompanhadas com o bilhete de ingresso a espaços e funções, socialmente valorizados, outrora negados ou restritos a determinados setores da população. A reação imediata é sempre o alarde e a ameaça que tais mudanças acarretariam nos valores considerados fundantes das “tradições nacionais”.

Desse ponto de vista, as cotas raciais, por exemplo, consistiriam num atentado em relação à nossa cultura e história social. Algo alienígena, fora do padrão e da lógica interna de nossa formação social. As cotas raciais ao solapar aquilo que, supostamente, constituiria à originalidade brasileira - a mestiçagem, a convivência harmônica entre as diferenças – instituiria algo “exótico” e contrário ao traço dominante de nossa cultura, ou seja: o dualismo racial, a divisão da nação com base numa linha de cor. O resultado: conflitos raciais antes inexistentes e a destruição das solidariedades fundantes de nossa cultura. Da Veja à Demétrio Magnoli, eis aí o argumento, e o medo ideológico, mais comum dos que se posicionam contrários às cotas raciais.

Por sua vez, a condenação às cotas sociais, destinadas a auxiliar o ingresso ao ensino superior de estudantes oriundos das escolas públicas ou mais pobres, segue a mesma linha de raciocínio do parágrafo anterior. Sua instituição é vista igualmente como um golpe nos valores essenciais de toda “sociedade moderna e democrática”. Ou seja, nas crenças liberais do mérito e da isonomia de todos perante a lei.

Em síntese, os posicionamentos contrários às políticas de cotas reivindicam, por um lado, um particularismo – extremamente naturalizado e essencializado - histórico-cultural do Brasil, e, por outro, o universalismo – igualmente naturalizado – dos valores da Ordem jurídica liberal, norteadora das sociedades modernas, eficientes e democráticas. Recorrer a fórmulas abstratas, ou melhor, a fabulações, contra desigualdades concretas é o mesmo que por, com as próprias mãos, uma venda sobre os olhos. O mais importante, como aprendemos desde Nietzsche, não é examinar a validade ou o grau de verdade dos valores e das representações mobilizados, mas quem os reivindica - quem exige igualdade e mérito?.

Nas últimas décadas, muitos autores das Ciências Sociais, da Filosofia e da Crítica Literária, como Edward Said, Stuart Hall, entre outros, partindo da idéia de que as identidades e os “valores civilizacionais” são sempre o resultado tenso, e nunca finalizado, das relações de forças assimétricas, de antagonismo e de hegemonia que constituem o social, dedicaram-se, em suas obras, a denúncia e a crítica de como as identidades e as representações hegemônicas de uma cultura ou nação, mascaram dominações, imposições arbitrárias de sentidos, desigualdades e exclusões de grupos minoritários.

Mais do que a crítica da sublimação da desigualdade e dos conflitos, que aquelas idéias e representações que muitos crêem definirem o Brasil e sua cultura, operam, creio que, a pressão política que movimentos sociais e que parte da sociedade civil exercem, atualmente, sobre a cena pública brasileira, sobretudo, por meio da reivindicação por políticas afirmativas no tocante a inclusão de novos agentes sociais a determinados espaços e funções, coloca em xeque algo bem mais importante, do ponto de vista político. A meu ver, são as tradicionais formas sociais de convivência, seu funcionamento político e social, sua homogeneidade étnica, de gênero e de classe, que é duramente colocado sob suspeição e crítica. Por conseguinte, as instituições que mediam as formas de convivência são, em igual modo, problematizadas; criticadas em sua função política e reivindicadas em sua expansão e aperfeiçoamento democrático.

A problematização das formas sociais de convivência, a introdução das diferenças e a geração de novos conflitos no seio dos espaços públicos, mais do que argumentos acerca de “justiça social” ou “reparação histórica”, são o que, de fato, me convencem acerca da relevância política das cotas, sejam elas raciais ou sociais, para o combate ao preconceito e a desigualdade. Desse ponto de vista não se deveria esperar até o ensino superior para introduzir políticas de inclusão institucional.

Creio que argumentos, sequiosos por sustentar as políticas de cotas para o acesso ao ensino superior, que enfatizam o caráter equalizador da fratura social e de reparação histórica, arriscam-se, desde sua formulação, a assentar sobre as universidades, para usar expressão do amigo Caio Padilha, “um estranho podium”, destinado a coroar aqueles que outrora naufragavam nos vestibulares. Parece-me desonesto e um equívoco fazer das políticas de cotas um tipo de política voltada para “salvar pessoas que não passam no vestibular”. Além do mais, precipita-se uma confusão imprudente entre políticas de cota e políticas educacionais.

Nesse sentido, esquece-se que uma política de combate ao preconceito e a desigualdade deve ir muito mais além de porcentagem de vagas ou bônus nas notas para minorias e/ou “classes desfavorecidas”. Se entendermos por política o mesmo que o filósofo francês Jacques Rancière (1996), portanto, como uma modalidade de ação cuja tarefa é provocar a redefinição dos espaços, das maneiras de vê-los e organizá-los. De tal modo que sujeitos e diferenças, outrora sufocadas e escamoteadas, tornem-se visíveis e audíveis enquanto seres políticos capazes de falar, intervir e atuar em conjunto a propósito das características e possibilidades do espaço social em que vivem. Então, não basta reservar vagas e auxiliar a entrada das minorias. Isso não seria política, mas, antes, no vocabulário conceitual do autor francês, o que este define como polícia: a distribuição das posições, da visibilidade dos sujeitos em termos de suas propriedades – as semelhanças e as diferenças étnicas, culturais, religiosas, biológicas, classe etc.

Uma política de cotas audaciosa é aquela que, com a mesma medida e com o mesmo ardor democrático, que põe em questão a configuração do espaço social – quem está presente? Quem está fora? – pergunta-se, igualmente, acerca da configuração do espaço epistemológico que os currículos e as bibliografias dos cursos superiores fabricam – qual o lugar nesses currículos reservado aos autores (as) negros e de outras minorias? A recusa e o esquecimento das produções intelectuais e artísticas dos negros, das mulheres, dos povos colonizados, enfim, dos subalternos em geral, não é de modo algum uma seleção intelectual segundo o mérito de cada um, mas um silenciamento.

Reivindicar e promover a experimentação e o conhecimento de outras tradições intelectuais, artísticas e filosóficas - que não as que se convencionou intitular de Ocidental -, de outros corpus de conhecimentos, significa inserir a perspectiva dos “ausentes da história”, por meio de suas próprias produções e ângulo, como vemos nos livros de W. E. B. Du Bois ou Franz Fannon. De sorte que a ótica e as produções dos excluídos dos espaços consagrados ao argumento e ao espírito façam-se visível e audível. E, desse modo, por meio dos conflitos, dos desentendimentos, das idéias e óticas distintas, novas relações com as diferenças sejam instituídas.

Alyson Thiago F. Freire

Referência:

RANCÌERE, Jacques. O desentendimento: Política e Filosofia. São Paulo. 34, 1996.

Noturnas

Como uma vasta e flutuante cortina negra, a noite desce sobre o firmamento. De cá, pergunto-me, se o que brilha nas paredes de sua obscuridade, em seu útero, são anéis ou cicatrizes? Continente destroçado por chuvas de diamantes e lágrimas.
Meus olhos fechados, alojados como chagas reluzentes em seu ventre, manchados de pó de estrelas e solidão, pecorrem suas entranhas, oh noite!
Daqui, amamento-me do orvalho eterno de suas idéias e poesias.

Alyson Thiago F. Freire

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

O capitalismo e a vida: entrevista com Richard Sennett





‘O capitalismo se tornou hostil à vida’. Entrevista com Richard Sennett


Eis aí um autor instigante. Sennett, mais conhecido pelo livro "O Declínio do homem público", é desses autores de escrita saborosa e reflexões atentas e precisas. A união do raciocínio sociológico com a descrição histórica confere às suas obras uma consistência ímpar, que se impõe ao leitor no decorrer da narrativa, quase sempre marcada por sensibilidade e análise crítica. Com o pano de fundo do lançamento de seu mais novo livro, O Artíficie, na entrevista a seguir, Sennett comenta como o capitalismo mudou o mundo, e não para melhor.
A aversão ao longo prazo característico do capitalismo foi um dos fatores que originaram a atual crise e que mudou radicalmente as nossas vidas nas últimas décadas.

A entrevista é de Justo Barranco e está publicada no jornal argentino Clarín, 23-12-2009. A tradução é do Cepat.


Eis a entrevista.


Por que a relação entre a mão e a cabeça é básica?


Nossa potência mental se desenvolveu através das mãos, da manipulação de coisas. Hoje pensamos nas atividades materiais como coisas estúpidas, percebemos nossos cérebros como uma máquina auto-suficiente. É errado. Há um processo aberto entre melhorar as capacidades físicas e o pensamento, uma relação estreita entre a mão, a cabeça e o coração. Pensamos um desenho e acreditamos que essa imagem mental pode projetar-se no mundo. Uma péssima política: não aprendemos da prática.


Parece aquela velha divisão filosófica entre alma e corpo.

Não é apenas a filosofia, a política também. O capitalismo fomentou esta divisão. Nas últimas décadas os bancos negociaram com abstrações, teorizam sobre os valores e perdem o contato com o que é uma fábrica, uma oficina. Muitos compram e vendem empresas que não entendem. Nem precisam, porque compram o seu valor monetarizado. E não há possibilidade, artesanato, de fazer com que a empresa seja boa ou má, não há conhecimento. Compram uma empresa de colchões e a vendem a outra, mas com mais dívida, esta faz o mesmo. A empresa tem cada vez menos capital e tende a quebrar. Perguntei a um dos compradores: viste como se faz um colchão? Me respondeu: para quê, se seria proprietário por apenas três meses. Assim se desenvolve agora a economia capitalista, se despreza a práxis, a mão na massa, não sabem o que fazer porque de fato nunca administraram nada.


É a exploração atual?


Sim, a dominação das finanças sobre a economia real. As finanças são uma operação abstrata. Sempre pensamos que o capitalismo é hostil ao artesanato porque descapacita o artista, mas é mais sofisticado: não está implicado na prática. Teoriza. Por exemplo, com a dívida. É uma das razões da crise atual.


E as outras?


Outra é a forma do tempo no capitalismo hoje: tudo é curto prazo. A economia global se reorienta para o comércio de preços das ações mais que os seus benefícios finais. A noção de administrar uma empresa para ter benefícios a longo prazo desapareceu. Podes ganhar dinheiro com empresas que estão perdendo. De maneira que quando chegas a uma economia como esta não tens interesse em conseguir que a economia real funcione.


Que pensa o autor de A corrosão do caráter do alarma pela alta taxa de suicídios em empresas como a Renaultou a France Télécom?


Na minha equipe estamos estudando o desemprego a longo prazo em Wall Street e encontrando coisas muito similares. Alcoólicos e suicídios não apenas entre os que perdem o trabalho, mas entre os que permanecem e que estão tão estressados porque para preservar o posto de trabalho têm que fazer cada vez mais. O capitalismo nos últimos 20 anos se tornou completamente hostil à construção da vida. No antigo capitalismo corporativo de mediados do século XX podias sofrer injustiças, mas construir a vida. Nos últimos 20 anos se converteu em algo desumano, e a esquerda está tão contente por serem homens práticos que podem falar com os banqueiros. De fato, o primeiro movimento na crise foi ajudar os bancos. Na Inglaterra foram comprados quatro e mesmo assim se decidiu não interferir no que fizeram.


Qual é a alternativa?

Não podemos voltar ao antigo capitalismo. A esquerda deve refletir sobre como fazer crescer empresas que realmente permaneçam. Empresas de tamanho pequeno como as do norte da Itália e do sul da Alemanha, com trabalhos muito especializados. Não fabricam em massa e trabalham mais a longo prazo, desde a formação dos trabalhadores até as suas relações de exportação. Um trabalho artesanal, que pode ser muito avançado, como telas de alta definição para cirurgias.


O Artífice é o início de uma trilogia de despedida.


Queria unir as preocupações básicas da minha obra, a relação entre o material e o social, o concreto e o abstrato. Depois me dedicarei ao violoncelo, terei recuperado a possibilidade de tocá-lo, mas só me restam dez anos na mão. Certamente, todos os músicos são artesãos, sabem que não existe uma ideia musical sem base física. O segundo livro será dedicado à relação entre o material e o social: a confiança, o respeito, a cooperação, a autoridade, o artesanato das relações sociais. E o terceiro, à nossa relação com o meio ambiente.


Você não aceita o que está por trás da ideia de sustentabilidade.

Porque não somos proprietários da natureza. Sustentabilidade significa manter as coisas como estão. É uma metáfora errônea. Podemos viver com muito menos. Menos tráfego, menos carbono. Diferentes tipos de prédios. Devemos mudar a noção da modernidade de que o ser humano sempre dominaria a natureza. Produz autodestruição. Copenhaguefoi terrível, especialmente os chineses, que cinco dias antes diziam “verde, verde”, e depois que não, que não queriam que ninguém interferisse nem conhecesse a sua tecnologia. Aterrador. E os europeus, fora do jogo.

domingo, 10 de janeiro de 2010

O DESPREZO DAS CLASSES MÉDIAS

Nos últimos dias, um pequeno vídeo, do famoso apresentador de telejornais brasileiro Boris Casoy, foi divulgado na internet (http://www.youtube.com/watch?v=0H9znNpeFao). No mencionado vídeo, Boris Casoy ironiza e menospreza o fato, incompreensível e ilegítimo, na cabeça do apresentador, de garis, do “alto de suas vassouras”, desejarem “felicidade” ao mundo.

Por certo, pensava Casoy: “ora, o que esses garis, o que alguém que recolhe nossos dejetos pode entender acerca da felicidade? Ou melhor, que mérito ou legitimidade moral e cognitiva possui um ‘lixeiro’ – expressão de Casoy – para ousar desejar felicidade a quem quer que seja?”. O deboche do apresentador reproduz dois pressupostos acerca do valor e do lugar no mundo de determinados indivíduos: primeiro, que os garis, por sua condição social e de trabalho, “o mais baixo na escala do trabalho” – mais uma vez, expressão de Casoy -, não teriam a capacidade cognitiva de compreender um conceito como o de felicidade; segundo, as características inerentes de sua atividade profissional desqualificam-nos, do ponto de vista moral, transformando o seu simpático desejo de felicidade num absurdo. Por um lado um contra-senso cognitivo, “epistemológico”, se quiserem, de outro, um contra-senso moral. Em outras palavras, o apresentador queria dizer; “Ponham-se em seu lugar”.

Outra situação razoavelmente similar, dessa vez aqui mesmo na esquina do Atlântico, está ainda a desenrolar-se e circular em comunidades do Orkut, email’s e conversas. O resultado do último vestibular da UFRN levantou, nos setores médios da sociedade, algumas perplexidades, espantos e clamores. Perdoe-me a generalização, mas é muito curioso e divertido como a reação da classe média, obviamente, somente quando sente-se diretamente atingida e ameaçada, é, quase sempre, uma reação espalhafatosa e estridente, que incomoda à vista, os ouvidos e, principalmente, à inteligência. Pois bem, a mais nova comoção foi devido ao Argumento de Inclusão (A.I), que abona os candidatos que cursaram, com aprovação, os três últimos anos do ensino fundamental e todo o ensino médio na Rede Pública, com um acréscimo de 10% em seu argumento final. Tal benefício, segundo alguns, foi responsável por algumas “injustiças”, uma espécie de discriminação invertida que “retirou” vagas que, por desempenho e mérito, pertenceriam à candidatos da Rede Particular de Ensino. Inclusive, o primeiro colocado geral do vestibular 2010 teria alcançado tal feito graças ao A.I.

O que esses dois acontecimentos têm em comum? Ambos tratam, em boa medida, da percepção que determinadas classes sociais, ou setores de classe, possuem em relação às outras. Mais do que isso. Eles reproduzem uma hierarquia moral e cognitiva de desqualificação e deslegitimação que, a meu ver, condiciona e explica, em parte, à reação de deboche, no caso Casoy, e da sensação de ilegitimidade, de incômodo, de injustiça ao mérito, no caso do A.I e do acesso dos estudantes oriundos das escolas públicas. O lugar moral e cognitivo dos pobres, dos marginalizados, é percebido como um lugar indigno, incipiente moral e cognitivamente, portanto uma perspectiva incapaz, ilegítima e previamente desqualificada de aceder à espaços e/ou valores identificados com a auto-representação que as classes médias tem de si mesmas e dos espaços e recursos socialmente significativos.

O desprezo ou ódio de classe não é apenas uma aversão, um sentimento de desdém privado, um “não querer se misturar”. Suas conseqüências estão para além de reações mais ou menos psicológicas, afetivas, por parte de indivíduos. Elas dizem respeito a uma forma de violência baseada na supressão de sujeitos: supressão de sua dignidade, de sua capacidade de dá sentido e de argumentar, de seu direito a ter direitos, de sua qualidade de sujeito moral de suas ações. Tal supressão opera em função da imposição do sentido legítimo de certos valores – como o de felicidade - e espaços sociais – como a Universidade Pública. Consequentemente, o desejo do não-compartilhamento de determinados espaços sociais, doadores de prestígio e distinção, e a falta de reconhecimento do outro como sujeito são, com efeito, uma tentativa de manter um espaço “puro”, reservado apenas a uma classe social e a reprodução de seu mundo e status.

No Brasil, as fronteiras entre os espaços, sejam eles institucionais ou não, é uma constante. Nossa “elite” adorar cindir os espaços, segundo uma lógica de classe, mas também racial, de modo que estes separem e demarquem, claramente, quem são os ricos e os pobres, os brancos e os negros; primeira classe e segunda classe, áreas vip’s, camarotes e arquibancadas, cidade alta e cidade baixa, senhor e escravo.

A ironia de Casoy e a prescrição de estigmas – tais como a de que os alunos da escola pública serão profissionais menos capacitados, que sua entrada na Universidade comprometerá o nível de qualidade, ou que eles não acompanharão o desempenho dos demais – são formas de justificar a violência de anulação do outro através de meios mais ou menos racionais. A violência é instrumentalizada por meio de argumentos que visam justificar e corroborar, com uma aura racional, lógica e humanista, a exclusão efetiva e simbólica de uma classe.

A noção de classes que aqui utilizo, tem mais a ver com a percepção sociocultural das classes, com a reprodução de determinadas representações e consensos partilhados, que constroem impositivamente, e asseguram, um determinado sentido do mundo social, dos indivíduos e de suas identificações, do que com a localização e função delas no modo de produção. As diferenças de classe, como solidamente atesta a obra de Pierre Bourdieu, possuem uma realidade simbólica, ou seja, estão ligadas à determinadas práticas socioculturais de diferenciação, valores, hierarquia de gostos e a aquisição de certos bens e recursos escassos. Essa definição implica entender as classes como algo construído, algo que se trata de fazer por meio de ações específicas no mundo prático capazes de comunicação e conhecimento. Nesse sentido, para Bourdieu as classes sociais somente existem como um espaço social, um espaço de diferenças a ser definido, produzido, marcado e preservado, não como um dado (BOURDIEU, 1996: 26-27).

Mas de onde veio esta percepção desqualificadora, que faz com que as classes médias, no Brasil, sintam ojeriza em compartilhar espaços com os pobres, com aqueles que Florestan Fernandes intitulava “os de baixo”? Pois bem, de modo algum diz respeito à natureza perversa e maligna dos ricos. Maniqueísmos só embotam a compreensão. Essa percepção desqualificadora nada mais é que o produto incorporado, ao longo da história da colonização, monarquia e república do Brasil, da sistemática e objetiva domesticação e socialização na subordinação e exclusão dos pobres, negros e índios, como sujeitos políticos, das instituições ligadas à técnica, à Ciência, ao argumento, à competência, à cultura, à arte, a esfera pública etc.

Para ter uma idéia desse processo de integração na subalternidade, integração pela humilhação desqualificadora e de seu impacto na vida dos “condenados da terra Brasilis”, convém conhecer um livro que, infelizmente hoje no currículo do curso de Ciências Sociais, permanece preguiçoso nas estantes, e nas mentes de alguns professores, com gosto de poeira e traça; A integração do negro na sociedade de classe, de Florestan Fernandes. Lê-lo, hoje, com olhos atentos às elaborações, e às derivações contemporâneas, da sociologia crítica de Pierre Bourdieu, e das discussões que se esforçam em reinserir, política e epistemologicamente, a perspectiva pós-colonial dos subalternos do Ocidente, nos conduzirá, com propriedade e ponderações necessárias, ao um entendimento fundamental dos mecanismos estruturais e da produção e manutenção de constrangimentos objetivos responsáveis pela reprodução das desigualdades, dos estigmas e dos privilégios de acesso de classe.

Nesse livro de Florestan, podemos enxergar sob que condições – a instalação do Estado burocrático, constituição do capitalismo moderno, o desenvolvimento de um mercado de trabalho seletivo e competitivo, a urbanização etc. -, no Brasil, o ângulo de visão de uma classe sobre outra e uma hierarquia do valor dos indivíduos, de suas identificações sociais e raciais, adquiriram significação, plausibilidade e eficácia prática em função do processo mesmo de sua dominação e integração. Nos termos de Florestan (1975), é a instauração de uma “ordem social competitiva” - responsável pela classificação e diferenciação social que anui, sob o mesmo lastro, classe e preconceito –, baseada nos valores liberais modernos da ética racional, mérito, competição, igualdade legal, realização pelo trabalho, esforço individual, que produziu constrangimentos objetivos ao acesso e a realização dos negros e mulatos, dos “de baixo”, de suas potencialidades econômicas e culturais. Em outros termos, foram-lhe vedadas as condições de possibilidade para a assimilação e aprendizado de determinadas competências linguísticas, cognitivas, culturais - os pré-requisitos psíquico-sociais do trabalho intelectual, por exemplo - necessárias e valorizadas em uma sociedade democrática e moderna.

No próximo post, continuarei, em parte, essa discussão, mas sob o enfoque das cotas e políticas afirmativas no campo da educação. Até lá!

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas: sobre a teoria da ação. Tradução de Mariza Corrêa. Campinas: Papirus, 1996.

FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo, Ática, 1978.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

PRÓLOGO

Uma das razões de criar este blog reside na aparente simplicidade de prosseguir a escrever. O que, com efeito, acredito, permite apoderar-se de uma sensação de liberdade necessária para aqueles, que não querem se ver sozinhos, de atuarem criativamente sobre sua solidão. Não me parece que desfrutar dessa encantadora liberdade seja uma vaidade, antes, trata-se, a meu ver, de uma forçosa exigência.

Ora, apesar da chamada blogosfera já está apinhada de gente envolvida nesta, já não tão nova, atividade, sua vastidão me faz crê que é perfeitamente suportável o acréscimo do peso de mais um indivíduo e mais algumas – qual seria a medida para avaliar, pesar, ponderar a matéria de tudo o que é produzido e criado no dito ciberespaço? – “toneladas” de textos, “informações”, ensaios etc. Afinal de contas, ao contrário da academia, os papéis, ou melhor, as árvores serão poupadas dessa “forçosa exigência” ou infeliz vaidade, que caracteriza a labuta diária dos que necessitam escrever.

Continuamente, este será um blog destinado a tentar produzir, aqui e ali, algumas sugestões de análise, lances de interpretação e possibilidades de diagnóstico referentes ao espetáculo maluco dos nossos dias. Não mais que insinuações a partir de algumas ferramentas das Ciências Sociais e da Filosofia, no sentido de alargar, o quanto possível, os horizontes por vezes tão estreitos e sem gosto das reportagens e coberturas mais correntes dos meios de comunicação hegemônicos, a propósito do que, atualmente, sucede-nos. Já que o autor do blog é algo que, digamos generosamente, assemelha-se a um sociólogo, confesso que há também aqui o desejo de satisfazer à curiosidade, ou melhor, de experimentar, de por à prova, àquilo que a teoria e os conceitos são capazes de criar em sua fricção positiva com a realidade, com os acontecimentos; o que pode ser dito, inferido, contraposto, recusado, desmistificado etc.

Mas por que fazê-lo aqui, em breves e trêmulas linhas, ao invés de restringir-se, e concentrar-se, exclusivamente, na – suposta - densidade e severidade que os espaços acadêmicos demandam? Por que não direcionar todos os esforços para o mundo das dissertações, das revistas especializadas, grupos de pesquisa, etc.? Talvez porque esse mundo, embora aprazível em muitas coisas, ao cada vez mais pressupor nossa submissão às esferas compartimentalizadas de competência no processo de produção intelectual, surpreenda-nos cada vez menos.

Cada escrito aqui, cada texto, guardam acasos que fazem das palavras, como nos diz os versos de Chico, palavras com:

“(...) temperatura, palavra que se produz muda, feita de luz mais de que de vento. Palavra boa. Não de fazer literatura, mas de habitar fundo o coração do pensamento, palavra”.

Esta suspeita encantadora, que me faz crê na imprevisibilidade de cada escrito, torna a tarefa de analisar e nomear os acontecimentos, isto é, de produzir interpretações uma tarefa perceptiva, que, segundo penso, tem nas Ciências Sociais um lugar privilegiado. Não apenas como um reservatório de aportes semi-acabados, grades de inteligibilidade que podem ser fundamentalmente pertinentes para a elaboração de posicionamentos mais consistentes e desafiadores a propósito da realidade e dos conflitos no quais estamos inseridos, mas, sobretudo, como uma matriz produtiva de novas possibilidades de compreensão. Experimentá-las num blog é como correr por outros caminhos e praticar a teoria social, com os pés na terra, também como uma prática da imaginação. Jogo tentador.

Parafraseando um famoso historiador – Paul Veyne – que um dia disse que a “História é feita para divertir os historiadores”, mas que, no entanto “seria mais agradável se divertir em companhias mais numerosas”, poderíamos também, creio, dizer o mesmo da Sociologia, da Filosofia etc. Portanto, se assumimos que a “Sociologia não valeria nem uma hora de esforço se fosse um saber de especialistas reservado aos especialistas” , então utilizar este espaço para pensar o que está a nos acontecer é também uma forma de buscar novas companhias. Pois bem, já me alongo por demais. Ao virtual leitor minhas boas-vindas, que possas nesse espaço encontrar algo que te agrade, te retempere, e que, às vezes, também encontre coisas que te decepcione.