Nos últimos dias, um pequeno vídeo, do famoso apresentador de telejornais brasileiro Boris Casoy, foi divulgado na internet (http://www.youtube.com/watch?v=0H9znNpeFao). No mencionado vídeo, Boris Casoy ironiza e menospreza o fato, incompreensível e ilegítimo, na cabeça do apresentador, de garis, do “alto de suas vassouras”, desejarem “felicidade” ao mundo.
Por certo, pensava Casoy: “ora, o que esses garis, o que alguém que recolhe nossos dejetos pode entender acerca da felicidade? Ou melhor, que mérito ou legitimidade moral e cognitiva possui um ‘lixeiro’ – expressão de Casoy – para ousar desejar felicidade a quem quer que seja?”. O deboche do apresentador reproduz dois pressupostos acerca do valor e do lugar no mundo de determinados indivíduos: primeiro, que os garis, por sua condição social e de trabalho, “o mais baixo na escala do trabalho” – mais uma vez, expressão de Casoy -, não teriam a capacidade cognitiva de compreender um conceito como o de felicidade; segundo, as características inerentes de sua atividade profissional desqualificam-nos, do ponto de vista moral, transformando o seu simpático desejo de felicidade num absurdo. Por um lado um contra-senso cognitivo, “epistemológico”, se quiserem, de outro, um contra-senso moral. Em outras palavras, o apresentador queria dizer; “Ponham-se em seu lugar”.
Outra situação razoavelmente similar, dessa vez aqui mesmo na esquina do Atlântico, está ainda a desenrolar-se e circular em comunidades do Orkut, email’s e conversas. O resultado do último vestibular da UFRN levantou, nos setores médios da sociedade, algumas perplexidades, espantos e clamores. Perdoe-me a generalização, mas é muito curioso e divertido como a reação da classe média, obviamente, somente quando sente-se diretamente atingida e ameaçada, é, quase sempre, uma reação espalhafatosa e estridente, que incomoda à vista, os ouvidos e, principalmente, à inteligência. Pois bem, a mais nova comoção foi devido ao Argumento de Inclusão (A.I), que abona os candidatos que cursaram, com aprovação, os três últimos anos do ensino fundamental e todo o ensino médio na Rede Pública, com um acréscimo de 10% em seu argumento final. Tal benefício, segundo alguns, foi responsável por algumas “injustiças”, uma espécie de discriminação invertida que “retirou” vagas que, por desempenho e mérito, pertenceriam à candidatos da Rede Particular de Ensino. Inclusive, o primeiro colocado geral do vestibular 2010 teria alcançado tal feito graças ao A.I.
O que esses dois acontecimentos têm em comum? Ambos tratam, em boa medida, da percepção que determinadas classes sociais, ou setores de classe, possuem em relação às outras. Mais do que isso. Eles reproduzem uma hierarquia moral e cognitiva de desqualificação e deslegitimação que, a meu ver, condiciona e explica, em parte, à reação de deboche, no caso Casoy, e da sensação de ilegitimidade, de incômodo, de injustiça ao mérito, no caso do A.I e do acesso dos estudantes oriundos das escolas públicas. O lugar moral e cognitivo dos pobres, dos marginalizados, é percebido como um lugar indigno, incipiente moral e cognitivamente, portanto uma perspectiva incapaz, ilegítima e previamente desqualificada de aceder à espaços e/ou valores identificados com a auto-representação que as classes médias tem de si mesmas e dos espaços e recursos socialmente significativos.
O desprezo ou ódio de classe não é apenas uma aversão, um sentimento de desdém privado, um “não querer se misturar”. Suas conseqüências estão para além de reações mais ou menos psicológicas, afetivas, por parte de indivíduos. Elas dizem respeito a uma forma de violência baseada na supressão de sujeitos: supressão de sua dignidade, de sua capacidade de dá sentido e de argumentar, de seu direito a ter direitos, de sua qualidade de sujeito moral de suas ações. Tal supressão opera em função da imposição do sentido legítimo de certos valores – como o de felicidade - e espaços sociais – como a Universidade Pública. Consequentemente, o desejo do não-compartilhamento de determinados espaços sociais, doadores de prestígio e distinção, e a falta de reconhecimento do outro como sujeito são, com efeito, uma tentativa de manter um espaço “puro”, reservado apenas a uma classe social e a reprodução de seu mundo e status.
No Brasil, as fronteiras entre os espaços, sejam eles institucionais ou não, é uma constante. Nossa “elite” adorar cindir os espaços, segundo uma lógica de classe, mas também racial, de modo que estes separem e demarquem, claramente, quem são os ricos e os pobres, os brancos e os negros; primeira classe e segunda classe, áreas vip’s, camarotes e arquibancadas, cidade alta e cidade baixa, senhor e escravo.
A ironia de Casoy e a prescrição de estigmas – tais como a de que os alunos da escola pública serão profissionais menos capacitados, que sua entrada na Universidade comprometerá o nível de qualidade, ou que eles não acompanharão o desempenho dos demais – são formas de justificar a violência de anulação do outro através de meios mais ou menos racionais. A violência é instrumentalizada por meio de argumentos que visam justificar e corroborar, com uma aura racional, lógica e humanista, a exclusão efetiva e simbólica de uma classe.
A noção de classes que aqui utilizo, tem mais a ver com a percepção sociocultural das classes, com a reprodução de determinadas representações e consensos partilhados, que constroem impositivamente, e asseguram, um determinado sentido do mundo social, dos indivíduos e de suas identificações, do que com a localização e função delas no modo de produção. As diferenças de classe, como solidamente atesta a obra de Pierre Bourdieu, possuem uma realidade simbólica, ou seja, estão ligadas à determinadas práticas socioculturais de diferenciação, valores, hierarquia de gostos e a aquisição de certos bens e recursos escassos. Essa definição implica entender as classes como algo construído, algo que se trata de fazer por meio de ações específicas no mundo prático capazes de comunicação e conhecimento. Nesse sentido, para Bourdieu as classes sociais somente existem como um espaço social, um espaço de diferenças a ser definido, produzido, marcado e preservado, não como um dado (BOURDIEU, 1996: 26-27).
Mas de onde veio esta percepção desqualificadora, que faz com que as classes médias, no Brasil, sintam ojeriza em compartilhar espaços com os pobres, com aqueles que Florestan Fernandes intitulava “os de baixo”? Pois bem, de modo algum diz respeito à natureza perversa e maligna dos ricos. Maniqueísmos só embotam a compreensão. Essa percepção desqualificadora nada mais é que o produto incorporado, ao longo da história da colonização, monarquia e república do Brasil, da sistemática e objetiva domesticação e socialização na subordinação e exclusão dos pobres, negros e índios, como sujeitos políticos, das instituições ligadas à técnica, à Ciência, ao argumento, à competência, à cultura, à arte, a esfera pública etc.
Para ter uma idéia desse processo de integração na subalternidade, integração pela humilhação desqualificadora e de seu impacto na vida dos “condenados da terra Brasilis”, convém conhecer um livro que, infelizmente hoje no currículo do curso de Ciências Sociais, permanece preguiçoso nas estantes, e nas mentes de alguns professores, com gosto de poeira e traça; A integração do negro na sociedade de classe, de Florestan Fernandes. Lê-lo, hoje, com olhos atentos às elaborações, e às derivações contemporâneas, da sociologia crítica de Pierre Bourdieu, e das discussões que se esforçam em reinserir, política e epistemologicamente, a perspectiva pós-colonial dos subalternos do Ocidente, nos conduzirá, com propriedade e ponderações necessárias, ao um entendimento fundamental dos mecanismos estruturais e da produção e manutenção de constrangimentos objetivos responsáveis pela reprodução das desigualdades, dos estigmas e dos privilégios de acesso de classe.
Nesse livro de Florestan, podemos enxergar sob que condições – a instalação do Estado burocrático, constituição do capitalismo moderno, o desenvolvimento de um mercado de trabalho seletivo e competitivo, a urbanização etc. -, no Brasil, o ângulo de visão de uma classe sobre outra e uma hierarquia do valor dos indivíduos, de suas identificações sociais e raciais, adquiriram significação, plausibilidade e eficácia prática em função do processo mesmo de sua dominação e integração. Nos termos de Florestan (1975), é a instauração de uma “ordem social competitiva” - responsável pela classificação e diferenciação social que anui, sob o mesmo lastro, classe e preconceito –, baseada nos valores liberais modernos da ética racional, mérito, competição, igualdade legal, realização pelo trabalho, esforço individual, que produziu constrangimentos objetivos ao acesso e a realização dos negros e mulatos, dos “de baixo”, de suas potencialidades econômicas e culturais. Em outros termos, foram-lhe vedadas as condições de possibilidade para a assimilação e aprendizado de determinadas competências linguísticas, cognitivas, culturais - os pré-requisitos psíquico-sociais do trabalho intelectual, por exemplo - necessárias e valorizadas em uma sociedade democrática e moderna.
No próximo post, continuarei, em parte, essa discussão, mas sob o enfoque das cotas e políticas afirmativas no campo da educação. Até lá!
REFERÊNCIAS
BOURDIEU, Pierre.
Razões Práticas: sobre a teoria da ação. Tradução de Mariza Corrêa. Campinas: Papirus, 1996.
FERNANDES, Florestan.
A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo, Ática, 1978.