Já que inevitavelmente o assunto é Copa do Mundo, vamos, então, falar um pouco dela, ou melhor, um pouco sobre os estereótipos um tanto quanto etnocêntricos que, vez por outra, escapam dos lábios de alguns dos comentaristas esportivos que cobrem os jogos. Quem assistiu a algum jogo de alguma seleção africana deparou-se, certamente, com “análises” que denunciavam uma certa displicência tática dos africanos. Estes, a despeito de sua habilidade e força física habitual, são tidos como jogadores, em seu conjunto, que pecam por jogarem um futebol inocente, demasiado voltado a atacar e despreocupado com os aspectos mais racionalizados – táticos – do jogo. Tal qual os preconceitos e estereótipos pelos quais as populações africanas foram, por séculos, representadas, suas seleções são também definidas como seleções exóticas, formada por jogadores não-civilizados, isto é, não domesticados pela tática, inocentes ainda preso na “infância do futebol”; um futebol alegremente irresponsável, pueril, que desperta tanto nos espectadores como nos comentaristas ocidentais um sentimento de simpatia graças a sua originalidade ainda não corrompida pelo futebol moderno.
Nesse tipo de comentário delineiam-se as velhas oposições pelas quais negros – mas também mulheres e os índios – foram sistematicamente inferiorizados pelo pensamento ocidental; em lugar das disposições racionais, da razão e da mente, disposições ligadas ao corpo, em vez do cálculo a inocência, a espontaneidade. Dessa forma, dizem os especialistas em futebol, as seleções africanas não logram êxitos maiores porque não conseguem controlar racionalmente, isto é, taticamente, suas inclinações “naturais” para o ataque, por isso quando enfrentam seleções maduras, com frieza tática - o corolário futebolístico para autocontrole –, em Copas do Mundo, elas sucumbem apesar da habilidade e força de seus jogadores.
As seleções asiáticas, por sua vez, são também compreendidas em termos dos estereótipos pelos quais mormente percebemos seus habitantes. A ênfase aqui não é tanto o corpo e a inocência infantilizadora, como no caso das seleções africanas, mas as metáforas ligadas a sua organização administrativa - disciplina, obediência, hierarquia - e os atributos associados a sua economia e produtividade – velocidade, dinamismo, competitividade, inovação.
Sobre a Coréia do Norte, por exemplo, recaí os adjetivos mais voltados ao seu regime político; “jogadores esforçados, de disciplina férrea, que respeitam o árbitro e suas marcações, padrão militar de jogo, a seleção mais fechada etc.”. Os jornalistas esportivos faziam questão de ressaltar, com espanto e ironia, o fato dos atletas norte-coreanos treinarem num ginásio público enquanto as outras seleções desfrutam de ginásios privados em hotéis de luxo numa alusão depreciativa à penúria socialista. Uma seleção stalinista, decerto, pensam os jornalistas.
Japão e Coréia do Sul, além das figurações exaustivas a propósito da velocidade e vigor de seus jogadores, ressalta-se, em rigor, a humildade de seus atletas, despretensiosos em contraste com a ostentação e o gosto pelo excesso das estrelas do futebol mundial. Os propósitos de seus atletas são encarados da mesma forma que a imagem de simpáticos e bobos asiáticos de câmeras fotográficas à mão; turistas mais ou menos contidos.
Evidentemente, a mobilização desses estereótipos e pré-noções não visa apenas descrever as mencionadas seleções nem tampouco reafirmar o porque das seleções européias e sul-americanas serem melhores, mas seguramente também a superioridade distintiva dos atributos, valores e disposições pelos quais se constrói e se visualiza a auto-imagem que os ocidentais fazem de si mesmos.
Essas leituras ridículas de "habitus corporal" dos jogadores de futebol feitas pelos jornalistas chegam a ser até engraçadas, não fosse a carga de preconceito cultural e essencialização de práticas num padrão cultural único.
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