sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Os argumentos do preconceito e as políticas de reconhecimento



Nas primeiras semanas de 2011, os odiosos sentimentos do preconceito, que a despeito de sua presença disfarçada e não-confessada na sociedade brasileira, lhe é uma das mais profundas e arraigadas marcas, transmutaram-se em lamentáveis atos; as agressões contra homossexuais na Av. paulista e as ameaças contra a Escola de Samba cujo enredo deste ano homenageia o Nordeste e os nordestinos.

Como dissemos acima, o preconceito, em suas diversas manifestações, desfruta, na sociedade brasileira, de um considerável acúmulo histórico urdido sob a forma do sofrimento, da exclusão, do esquecimento e da subordinação inscritos nos corpos e no cotidiano de muitas pessoas. Porém, tal acúmulo empírico de sofrimento social e desestima moral, registrado da maneira mais desonrosa possível, parece não ser suficiente, segundo a estreita mentalidade de alguns cérebros, estúpidos ou simplesmente mal-intencionados, para suscitar certa receptividade quanto à urgência e necessidade de uma avaliação e mudança nas estruturas normativas de nossa sociedade presente.

Desse modo, iniciativas e projetos de lei como PNDH-III ou o PLC 122 (chamado de AI-5 “gay” pelos detratores), que buscam promover um questionamento e uma modificação dos horizontes de nossas noções morais, além de proteger e assegurar as condições para o devido e legítimo reconhecimento dentro da sociedade de agrupamentos de pessoas histórica e socialmente desprestigiados e lesados pelo desrespeito, preconceito e pela estigmatização sistemática, são constantemente, atacados, desvirtuados, aviltados e desclassificados, tanto na mídia hegemônica como no cotidiano das conversas. Para tal, os conservadores costumam recorrer aos mais esdrúxulos malabarismos retóricos, pseudo-reflexivos, que mais não fazem do que confirmar a urgência de tais projetos e a presença bruta e revoltante do preconceito, da discriminação no Brasil e, obviamente, da ignorância contagiosa.

Um dos mais comuns e prediletos argumentos dos diletantes conservadores, como Reinaldo Azevedo, em sua arte no contorcionismo retórico, é o pretenso argumento segundo o qual tais projetos ou leis gerariam ou isolacionismo dos ditos grupos discriminados ou uma espécie de preconceito às avessas. Ou seja, denunciam uma suposta contradição de acordo com a qual o projeto que tencionaria combater o preconceito acabaria, nos moldes pelos quais está formulado, por gerar ainda mais preconceito ao formalizar e alimentar antagonismos e acirramentos. O caso das cotas nas Universidades é contundente nesse sentido. Como característico do pensamento conservador, seus defensores querem, com esse argumento, manter os antagonismos, acirramentos, as relações de dominação e de assimetria velados, não-tematizados, mantê-las às escondidas.

Outro dos argumentos prediletos diz respeito à propalada liberdade de expressão, musa venerada das sociedades liberais e cuja fragilidade faz de sua defesa e proteção, principalmente por parte da imprensa, assemelhar-se ao empenho com que os esmerados pais e irmãos mais velhos dedicavam à virgindade de suas filhas e irmãs nos anos 50. Assim, os ditos conservadores esperneiam e alardeiam sobre o “autoritarismo” de tais leis e iniciativas que, segundo seu entendimento, objetivam controlar e cercear o direito de “crítica”, de expressão, de discordância e de manifestação de valores e opiniões contrárias a determinadas práticas, hábitos ou modos de vida. O curioso é que geralmente os mesmos que esbravejam indignados contra o suposto autoritarismo latente em projetos como a Lei contra a Homofobia, esses “defensores da liberdade esclarecida”, também clamam, em tempos em tempos, pela necessidade do Estado possuir um poder de vida e de morte como medida para coibir os crimes violentos.
Na defesa do indefensável, muitos são os malabarismos argumentativos, que embora rasos, gozam de poderosa e fácil entrada no mundo da opinião corrente. O que me espanta e intriga é o que subjaz como comum nesses descontentamentos ressentidos disfarçados de incômodos “democráticos”; uma espécie de reivindicação do direito ao ódio legitimado através da condição de distinção social pela desqualificação do outro.

De algum modo, certas classes de pessoas acreditam, como se fosse um tipo de convicção interior, que elas possuem o direito de odiar, ou de sentirem-se superiores, a outros tipos de pessoas, pois em grande medida tal ódio à diferença constitui aquilo mesmo que elas pensam ser sua própria singularidade. Elas se imaginam detentoras exclusivas de determinadas qualidades e atributos humanos socialmente valorizados, como autonomia, dignidade e liberdade, caráter, inteligência, êxito etc..

Assim, toda iniciativa de mudança que vise atingir as estruturas normativas da sociedade a fim de alargar o espectro social, étnico e de gênero quanto ao reconhecimento moral sofre inelutavelmente infindos ataques, pois o que está em jogo é a manutenção de um arraigado sentimento de distinção cuja satisfação é desfrutada mediante o olhar de medição que comprove a distância social e a superioridade moral entre determinados “tipos” de pessoas – héteros e gays, paulistas e nordestinos. O argumento do preconceito é a tentativa conservadora de preservar intacto tal sentimento assim como as condições sociais, normativas, econômicas e políticas de distinção e superioridade através da crença no monopólio de certos atributos e qualidades humanas. Uma vez desconstruída essa crença, com o auxílio da crítica e, sobretudo, das injunções normativas no plano legal e da moral social, emergem as condições imprescindíveis para o estabelecimento de uma igualdade e reconhecimento mútuo e compartilhado para tratar uma pessoa com o mesmo respeito e igual consideração.

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