sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Sobre a liberdade de imprensa e seus inconvenientes


Um dos temas mais recorrentes e típicos das modernas sociedades democráticas é o da liberdade de imprensa. Em seu nome, aturamos uma série de sandices e nulidades diárias; atentados à inteligência, espetáculos de histeria, fraseologias preconceituosas, explorações torpes da miséria e ignorância alheia, etc.. A liberdade de imprensa é uma impertinência, mas há de se saber conviver com ela e, sobretudo, de saber defendê-la. Por tais circunstâncias que, volta e meia, ela desponta no âmbito da opinião pública com seu peculiar vigor. Ao seu redor, cercam-se distintos interesses ideológicos e palavras de ordem, de maneira que ela é chacoalhada para todos os lados do espectro político. Os mais à direita tomam-na como uma garantia indispensável à democracia, e que, por isso, assim dizem, deve ser protegida e mantida imaculada da interferência impura do Estado. Os mais à esquerda, por sua vez, exclamam por mais responsabilidade, imparcialidade, pluralismo e compromisso com a objetividade e a qualidade.

Na maioria das vezes, no meio desse burburinho de interesses políticos, financeiros e ideológicos, nós, cidadãos democráticos, ficamos um tanto quanto desorientados acerca da validade e do real conteúdo e finalidade desses posicionamentos. E, naturalmente, o que deveria ser transparente, torna-se obscuro ou simplesmente cansativo. Portanto, sejamos mais precisos com respeito a alguns pontos acerca da liberdade de imprensa e sua relação com a sociedade brasileira.

Em primeiro lugar, penso que a liberdade de imprensa, defendida com tanto ardor e convicção pela direita brasileira, é, a meu ver, excessiva e irrefletidamente superestimada. Trata-se, de fato, de uma conquista importante e imprescindível. Contudo, na maior parte das sociedades, ela foi uma conquista sem maiores custos se posta ao lado de outras, tais como os direitos trabalhistas, que foram conquistados, em todo mundo, graça a um volume de energia social e sangue incomparáveis. Com isso, de modo algum quero sustentar sua abolição por conta de sua banal e convencional relevância,  nem também desmerecer e desconsiderar o papel político e cultural inconteste que jornalistas e escritores exerceram, no uso da imprensa, em favor da justiça e da democracia contra regimes autoritários. Muito pelo contrário. A provocação e ironia aqui visam, mais do que suprimir a liberdade de imprensa, lhe retirar a auréola de santidade que lhe foi posta; pois se por um lado a liberdade de imprensa serviu para articular e encorpar a luta pela liberdade e justiça, por outro, ela serviu também para propagandear inverdades, preconceitos e boatos que arruinaram vidas e países, ou simplesmente para alavancar as taxas de lucros de algum pequeno grupo de investidores e empresários em total detrimento do esclarecimento da maior parte da população.

De um modo geral, a imprensa, ou melhor, a dita “grande mídia”, no Brasil, não adota a mesma postura crítica, com que costuma combater às iniciativas por parte do Estado em promover marcos regulatórios sobre a comunicação social, quando se trata de criticar suas próprias contradições internas – que bem poderíamos chamar dos verdadeiros ataques à liberdade de expressão. Pensemos no grau de influência, ou melhor, de controle na linha editorial que determinados grupos ideológicos, comprometidos com os oligopólios midiáticos, exercem; ou ainda, o empobrecimento da pluralidade e da consistência e do potencial educativo e cultural dos conteúdos informativos por conta de uma política comunicacional voltada mais ao entretenimento, ao sensacionalismo e à velocidade dos lucros do que com a qualidade, a objetividade e a mínima reflexão maturada. O que dizer do fato deplorável de que a revista de maior circulação do Brasil, ou melhor, o Grupo Abril, do qual a Veja faz parte, possuir como o maior detentor de suas ações, uma empresa que apoiou e contribuiu abertamente o regime de Apartheid na África do sul? Ora, quem quer que se valha de tais métodos e relações espúrias não está tão preocupado com a proteção da chamada liberdade de expressão, quanto está com a defesa de determinados interesses financeiros e políticos.

Na verdade, a liberdade de imprensa que de fato importa à “grande mídia” mais não é do que a liberdade de expressão dos grupos ideológicos e econômicos que a financiam. Daí, concluímos duas coisas: primeiro, que a liberdade de expressão, nesses espaços, somente é usufruída por aqueles sujeitos (intelectuais, artistas, jornalistas) que confirmam os conceitos e os consensos pré-estabelecidos a serem difundidos e defendidos sob o disfarce de “opinião pública”, de verdade, de justiça etc.. Deriva disso a sensação de repetição que caracteriza as abordagens da “grande mídia”. Segundo, que a defesa da liberdade de imprensa é, na verdade, pura demagogia, pois o objeto real de preocupação e defesa consiste na manutenção do monopólio dos meios de comunicação nas mãos de alguns poucos grupos familiares e empresariais.

Imaginem agora vocês, o impacto, que essas, e tantos outras práticas comuns na “grande mídia”, não fazem à vida política e cultural da sociedade. Se há no quadro que esbocei alguma plausibilidade e razoabilidade mínima, será que não deveríamos prestar mais atenção e levar mais a sério as reivindicações por uma maior regulação na comunicação social, no sentido de sua maior abertura, democratização e descentralização? Afinal de contas, quantos de nós não aceitamos como correto e indispensável a regulação do Estado contra a fome capitalista e seu avanço no meio ambiente, então, por que não seria igualmente correto e indispensável pensar o mesmo em relação à produção e atividade da imprensa?

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Os argumentos do preconceito e as políticas de reconhecimento



Nas primeiras semanas de 2011, os odiosos sentimentos do preconceito, que a despeito de sua presença disfarçada e não-confessada na sociedade brasileira, lhe é uma das mais profundas e arraigadas marcas, transmutaram-se em lamentáveis atos; as agressões contra homossexuais na Av. paulista e as ameaças contra a Escola de Samba cujo enredo deste ano homenageia o Nordeste e os nordestinos.

Como dissemos acima, o preconceito, em suas diversas manifestações, desfruta, na sociedade brasileira, de um considerável acúmulo histórico urdido sob a forma do sofrimento, da exclusão, do esquecimento e da subordinação inscritos nos corpos e no cotidiano de muitas pessoas. Porém, tal acúmulo empírico de sofrimento social e desestima moral, registrado da maneira mais desonrosa possível, parece não ser suficiente, segundo a estreita mentalidade de alguns cérebros, estúpidos ou simplesmente mal-intencionados, para suscitar certa receptividade quanto à urgência e necessidade de uma avaliação e mudança nas estruturas normativas de nossa sociedade presente.

Desse modo, iniciativas e projetos de lei como PNDH-III ou o PLC 122 (chamado de AI-5 “gay” pelos detratores), que buscam promover um questionamento e uma modificação dos horizontes de nossas noções morais, além de proteger e assegurar as condições para o devido e legítimo reconhecimento dentro da sociedade de agrupamentos de pessoas histórica e socialmente desprestigiados e lesados pelo desrespeito, preconceito e pela estigmatização sistemática, são constantemente, atacados, desvirtuados, aviltados e desclassificados, tanto na mídia hegemônica como no cotidiano das conversas. Para tal, os conservadores costumam recorrer aos mais esdrúxulos malabarismos retóricos, pseudo-reflexivos, que mais não fazem do que confirmar a urgência de tais projetos e a presença bruta e revoltante do preconceito, da discriminação no Brasil e, obviamente, da ignorância contagiosa.

Um dos mais comuns e prediletos argumentos dos diletantes conservadores, como Reinaldo Azevedo, em sua arte no contorcionismo retórico, é o pretenso argumento segundo o qual tais projetos ou leis gerariam ou isolacionismo dos ditos grupos discriminados ou uma espécie de preconceito às avessas. Ou seja, denunciam uma suposta contradição de acordo com a qual o projeto que tencionaria combater o preconceito acabaria, nos moldes pelos quais está formulado, por gerar ainda mais preconceito ao formalizar e alimentar antagonismos e acirramentos. O caso das cotas nas Universidades é contundente nesse sentido. Como característico do pensamento conservador, seus defensores querem, com esse argumento, manter os antagonismos, acirramentos, as relações de dominação e de assimetria velados, não-tematizados, mantê-las às escondidas.

Outro dos argumentos prediletos diz respeito à propalada liberdade de expressão, musa venerada das sociedades liberais e cuja fragilidade faz de sua defesa e proteção, principalmente por parte da imprensa, assemelhar-se ao empenho com que os esmerados pais e irmãos mais velhos dedicavam à virgindade de suas filhas e irmãs nos anos 50. Assim, os ditos conservadores esperneiam e alardeiam sobre o “autoritarismo” de tais leis e iniciativas que, segundo seu entendimento, objetivam controlar e cercear o direito de “crítica”, de expressão, de discordância e de manifestação de valores e opiniões contrárias a determinadas práticas, hábitos ou modos de vida. O curioso é que geralmente os mesmos que esbravejam indignados contra o suposto autoritarismo latente em projetos como a Lei contra a Homofobia, esses “defensores da liberdade esclarecida”, também clamam, em tempos em tempos, pela necessidade do Estado possuir um poder de vida e de morte como medida para coibir os crimes violentos.
Na defesa do indefensável, muitos são os malabarismos argumentativos, que embora rasos, gozam de poderosa e fácil entrada no mundo da opinião corrente. O que me espanta e intriga é o que subjaz como comum nesses descontentamentos ressentidos disfarçados de incômodos “democráticos”; uma espécie de reivindicação do direito ao ódio legitimado através da condição de distinção social pela desqualificação do outro.

De algum modo, certas classes de pessoas acreditam, como se fosse um tipo de convicção interior, que elas possuem o direito de odiar, ou de sentirem-se superiores, a outros tipos de pessoas, pois em grande medida tal ódio à diferença constitui aquilo mesmo que elas pensam ser sua própria singularidade. Elas se imaginam detentoras exclusivas de determinadas qualidades e atributos humanos socialmente valorizados, como autonomia, dignidade e liberdade, caráter, inteligência, êxito etc..

Assim, toda iniciativa de mudança que vise atingir as estruturas normativas da sociedade a fim de alargar o espectro social, étnico e de gênero quanto ao reconhecimento moral sofre inelutavelmente infindos ataques, pois o que está em jogo é a manutenção de um arraigado sentimento de distinção cuja satisfação é desfrutada mediante o olhar de medição que comprove a distância social e a superioridade moral entre determinados “tipos” de pessoas – héteros e gays, paulistas e nordestinos. O argumento do preconceito é a tentativa conservadora de preservar intacto tal sentimento assim como as condições sociais, normativas, econômicas e políticas de distinção e superioridade através da crença no monopólio de certos atributos e qualidades humanas. Uma vez desconstruída essa crença, com o auxílio da crítica e, sobretudo, das injunções normativas no plano legal e da moral social, emergem as condições imprescindíveis para o estabelecimento de uma igualdade e reconhecimento mútuo e compartilhado para tratar uma pessoa com o mesmo respeito e igual consideração.